Nós, o Ano Novo, passamos os três. Ceiamos em casa e depois fomos ver os fogos na praia. Do céu despencou um dilúvio. Adivinhei que havia chegado a hora do Juízo Final. Do mar bateu uma ventania de cortar os ossos encharcados. Vanda estava com uma manta roxa, e a tintura escorria em gotas roxas que tingiram o vestido ex-branco e as sandálias ex-brancas dela, pintaram a minha calça ex-branca e a roupa ex-branca da Marina. Fui jogar umas flores ao mar e Iemanjá arrebatou-as de minhas mãos com uma rajada fria. Durante trinta minutos tiritamos na umidade semigélida, os cabelos pingando ao vento, esperando dar meia-noite. De repente o céu explodiu em clarões. No susto percebi que havia chegado a hora: É agora! Pedi perdão pelos meus pecados, pelos que pecara e pelos que ainda pecaria se me sobrasse tempo, e apertei as pálpebras temendo o pior. A multidão gritava agitada. Enchi-me de coragem e abri os olhos para ver os Cavaleiros do Apocalipse ? por incrível que pareça, era só um show de fogos de artifício para saudar não se sabe bem se o fim de um milênio ou o começo do outro. Quando me dei conta, já estávamos no século XXI. Vanda e Marina, abraçadas, fundiam-se num voluptuoso beijo de língua. Ei, também quero, reivindiquei. Meti-me entre as duas e enlaçamo-nos os três com sofreguidão. Vivido o momento, ensaiamos a volta à casa. A multidão se comprimia nas ruas que desaguavam na praia e tentava em vão remar contra a maré. Ficamos entalados no meio da turba compacta. A nossa vingança foi tingir de roxo todos os que esbarravam em nós: a maldição da manta roxa! Aquilo devia ser um sinal de Iemanjá. Quem sabe, a deusa do mar achasse que ainda era cedo e quisesse mais festa. Resolvemos voltar à praia. Mas não dava para nadar contra um mar de pessoas que insistia em avançar contra uma muralha de gente imóvel ? adultos, velhos, crianças esmagados uns contra os outros. Finalmente, como por milagre, conseguimos escapar por uma brecha na compacta massa humana. Esperamos um bocado à beira do mar; a multidão foi descompactando, e pudemos retomar o caminho de casa. Chegando ao apartamento, fomos correndo pro chuveiro lavar a tinta roxa que já impregnara até as unhas dos nossos pés. Esfregamo-nos, com lascívia, uns nos outros. Esfregamo-nos, com vigor, uns aos outros. Esfregamos e não conseguimos remover o tingimento. De modo que acordamos roxos no dia primeiro.
Pois é, que coincidência… Diziam os babalorixás que o ano seria regido por Omulu, o orixá que cuida da saúde e da morte. Não foi à toa a cor roxa. Sinal de que as flores foram bem aceitas e de que nós, roxos, receberíamos proteção o ano inteiro. Que bom!
Virei-me para as duas e pontifiquei: Este milênio, anotem o que estou dizendo, este será um milênio roxo. Acreditem. O tempo se conta em mil anos. E tem cor.
Ao que Vanda e Marina ripostaram uníssonas: Um feliz milênio roxo para todos nós!
Estávamos de férias. Comprei uma sunga roxa, elas compraram biquines roxos, e fomos tocando os dias, alegres e distraídos, na praia de Copacabana.
No dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, sob um sol escaldante, no mesmo ponto da beira onde Iemanjá arrancara a oferenda das minhas mãos, as ondas devolveram à areia os nossos três corpos roxos.
Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996).