Certa noite tive uma idéia, daquelas que chegam sem nenhuma explicação aparente, de escrever uma topografia sentimental de Copacabana. O método seria simples: cada rua me levaria a lembranças, evocações, alegrias, tristezas quiçá, saudades sem dúvida. Exercícios mnemônicos. Vamos a eles.
Avenida Princesa Isabel, há quarenta anos. Belorizontino, primeira vez no Rio enturmado, já que um amigo trabalhava para a TCA (companhia de teatro Tônia – Celi – Autran). Íamos beber e ouvir música na boate Hi – Fi que ficava no térreo do Hotel Plaza. Dudu Barreto Leite, irreverente e bem-humorada, brincava então com os versos de uma canção da moda: “Mulher que em casa é fria / fode lá fora” (A noite está tão fria / Chove lá fora).
Ali perto a Prado Júnior, local obrigatório de boemia da época. Cervantes e Beco da Fome. No primeiro, dois tipos de incursão: uma mais ou menos careta, quando as festinhas terminavam e a gente ia comer sanduíche e tomar os chopes finais com pessoas comportadas; a outra temerosa, no final da madrugada, já que o Cervantes era um dos poucos bares abertos, quando topávamos com o Peréio já meio alto, correndo o risco de uma discussão evidentemente gratuita (ele namorava Jura, uma amiga de Belo Horizonte). No Beco da Fome, a paz com o caldo verde ou os quibes maravilhosos que até hoje são uma referência qualitativa para qualquer quibe: tão gostoso como o do Beco da Fome.
Do outro beco, o das Garrafas, não me esqueço nunca de ter ouvido no Litlle Club o Cauby Peixoto, com seu vozeirão, cantar, se não me engano, “Litlle Darling” (também não tenho certeza se o nome da música é este).
Saindo da Duvivier, caminhando para o Lido, a Belfort Roxo me faz lembrar da Mara Mijona. Com ela fui a um bar chamado Chaplin, onde passava comédias de Carlitos, e as pessoas ficavam sentadas em tamboretes no balcão; fui para casa com a morena gaúcha Mara e descobri na cama molhada a razão do seu apelido.
Ronald de Carvalho! Lá estava o primeiro apartamento que aluguei no Rio, a um preço de banana, conseguido por um grande amigo. Desperdicei a chance irresponsavelmente. E até com certo perigo: uma bela noite, pleno verão, fui dormir com o cigarro aceso para a última tragada: apago aparentemente com um copo d’água um foguinho no colchão; acordo com a porta sendo arrombada pelos bombeiros, a fumaçada que saía pela janela (era no térreo) alertou a vizinhança que amedrontada chamou a corporação. É claro que a dona do apartamento, que ficou em péssimo estado, perdeu a confiança no locatário.
Sem sair deste início de Copacabana, ainda tem nesta pequena topografia sentimental a Viveiros de Castro. A evocação é singela. Fiz uma operação no pé direito e fiquei engessado até a coxa por 90 dias. Aluguei um apartamento na Viveiros por temporada, não podia sair de casa, convidei uma amiga pra ficar comigo, bebia uísque o dia todo (meu médico não desaprovou). Foi no início de 64. Jango ainda no poder, nada de milico. Minha amiga era assídua do Paissandu e adorava a nouvelle vague. Eu também. Batíamos grandes papos, diálogos brilhantes. A diferença fundamental é que nos filmes franceses, além de conversa havia especialmente a transa. Nós, porém, ficávamos a ver estrelas.
Flávio Pinto Vieira é jornalista e escritor; autor do livro de contos Nove histórias e dez mulheres, Ed. Sete Letras.