Jorge Borges

Jorge Borges

A busca pela reconstrução das utopias da esquerda, por uma transformação da Sociedade em direção ao Socialismo, passa necessariamente pela fundação de um outro modelo de Cidade. A reprodução ampliada do Capital, atualmente, converge a passos largos para a mercantilização e/ou privatização da água, do Patrimônio Histórico e Cultural, do Saneamento, da Mobilidade, do direito inalienável à moradia digna, enfim, tudo o que dá sentido à vida na Cidade, tudo o que conforma as identidades comunitárias e de bairro – para além do próprio Capital.

A busca pela reconstrução das utopias da esquerda, por uma transformação da Sociedade em direção ao Socialismo, passa necessariamente pela fundação de um outro modelo de Cidade. Um modelo de Cidade cujos princípios fundamentais incorporem:

1) A garantia do acesso universal a bens e serviços públicos que supram necessidades gerais e imediatas da população, tais como: Educação, Saúde, Saneamento, Transporte, Energia, Água, Informação, Cultura e Desporto;

2) Um questionamento frontal aos poderes dos grandes proprietários de imóveis urbanos, o que significa garantir instrumentos concretos de apropriação da renda da terra, eliminando ou, no mínimo, reduzindo o caráter de ativo econômico dos bens imóveis; e

3) A liberdade do ir e vir.

Trata-se de uma luta difícil, sem dúvida. E como toda luta, a construção dessa Cidade Livre e Socialista requer estratégias de curto, médio e longo prazos. E como toda luta psolista, esta deve contemplar, igualmente, uma perspectiva libertária e socializante das avaliações e caminhos a serem seguidos. A diversidade deve aparecer muito mais como riqueza sócio-cultural, ou seja, como oportunidade de mudança, do que como obstáculo à realização de um projeto definido a priori, por um grupo reduzido de entendidos.

A reprodução ampliada do Capital, atualmente, converge a passos largos para a mercantilização e/ou privatização da água, do Patrimônio Histórico e Cultural, do Saneamento, da Mobilidade, do direito inalienável à moradia digna, enfim, tudo o que dá sentido à vida na Cidade, tudo o que conforma as identidades comunitárias e de bairro – para além do próprio Capital.

É preciso que fique claro, logo de início, que não se trata de uma luta fratricida entre os diferentes segmentos sociais que habitam a Cidade. Por outro lado, o convívio entre as diferenças não pode significar uma capitulação disfarçada de conciliação de classes, de “amenização” dos efeitos perversos da modernização capitalista sobre a classe trabalhadora. O questionamento do regime de propriedade privada da terra significa, antes de tudo, a presença, a moradia e os espaços de trabalho e de lazer dignos para todas as classes sociais em todas as áreas da Cidade. Terras, imóveis, equipamentos e infra-estruturas passam a ser vistos como meio de realização plena da vida humana e não como objeto de especulação e de exploração de uns pelos outros.

Mudanças nos marcos jurídico-institucionais

Após décadas de luta dos Movimentos Sociais Urbanos, com fortes vínculos junto às vanguardas de esquerda, o Século XXI começa com a entrada em vigor do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/01) e com a criação do Ministério, das Conferências e do Conselho das Cidades (em 2003), por iniciativa do Governo Federal.

Essa trajetória, apesar de recente, permite-nos reconhecer grandes avanços na capacidade do Estado brasileiro absorver certas demandas da Sociedade Civil e de criar condições para que as lutas sociais na Cidade tenham uma possibilidade de encaminhamento. Entretanto, é igualmente verdadeira a avaliação de que a grande maioria das políticas públicas elaboradas no âmbito do Ministério das Cidades tem sido conduzida por uma visão hesitante acerca do enfrentamento dos velhos monopólios da incorporação imobiliária e dos transportes públicos, além de estagnar políticas públicas de saneamento ambiental em várias regiões brasileiras. Outro fator complicador aparece na cerca jurídica conformada pela elitização histórica dos órgãos de Estado ligados ao conflito urbano (tais como o Ministério Público e o Judiciário) que raras vezes representam um benefício real para o Povo – menos ainda para as classes mais empobrecidas.

Mais além, o potencial de mobilização social representado pelas Conferências e pela estrutura dos Conselhos das Cidades vem perdendo o fôlego exatamente pela falta de cultura política do debate sobre o urbano e pela ausência de referenciais de método que permita o encontro respeitoso das diferenças, a garantia da pluralidade de visões e projetos, e sua materialização. De um lado, uma visão ainda dominada pela ditadura da técnica e da ciência, embaladas hermeticamente nos laboratórios e nos discursos universitários, de ONGs e de escritórios de consultoria, faz com que a questão seja vista como “um assunto para especialistas” e a luta seja considerada apenas no plano jurídico-institucional. De outro lado, organizações comunitárias e movimentos sociais dispersos, apoiados por heróicas resistências entre os mais doutos, mas sem capacidade para mobilizações amplas, com pouco acesso aos principais dados e informações que lhes permitiriam uma luta mais consistente e com maior capacidade de integração com outras pautas de outras lutas específicas.

Quebra de dicotomias

No plano da integração entre as diferentes lutas, vale lembrar que as últimas décadas foram marcadas, também, pela ascensão de algumas agendas cujos conteúdos congregam questões como a proteção ambiental (que nos remete ao modelo de desenvolvimento brasileiro), os movimentos das minorias sociais e políticas (de gênero, sexuais, étnicas), o fortalecimento da luta pela Reforma Agrária entre outros. Verifica-se, muito recentemente, uma oportunidade para a superação de tais abordagens, através da consolidação de temas transversais que permitam ações conjuntas, integradas, entre os diferentes movimentos sociais.

Assim, como exemplo, a luta pela preservação dos ecossistemas brasileiros poderia estar inserida nos debates dos Planos Diretores participativos, garantindo o direito à moradia e o desenvolvimento de atividades sócio-econômicas verdadeiramente sustentáveis para comunidades cujos modos de vida encontram-se intimamente ligados aos ritmos da natureza (pescadores, pequenos agricultores em áreas periurbanas, comunidades em áreas de risco ambiental etc.). Na mesma direção, a luta pelo reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombos perpassaria os limites da questão agrária e da questão urbana e estaria contemplada, também, no fortalecimento destas comunidades que resistem à modernização capitalista mesmo em áreas metropolitanas. Também no plano das lutas dos trabalhadores sindicalizados, o modo de produção capitalista abre um outro flanco para ser questionado, quando a carestia da moradia e a imposição de padrões de consumo e relações de trabalho insustentáveis são impostos às classes sociais médias e baixas, levando a um aumento da desagregação social, da intolerância, da violência e da segregação.

Revisão de paradigmas de planejamento

Um processo marcante na atual conjuntura é o desmanche de quase todas as certezas, sejam elas teóricas ou metodológicas, e a perspectiva de ascensão de outras formas de interpretação e compreensão dos processos sociais e dos jogos políticos sobre a Cidade. Existe uma necessidade urgente de desenvolvimento de metodologias e processos de planejamento que incorporem a diversidade e a pluralidade dos vários segmentos sociais envolvidos nos embates políticos sobre a Cidade, em detrimento de abordagens marcadas por uma racionalidade maquínica e totalmente condicionada por interesses descolados das necessidades sociais.

Mais uma vez, a proposta de uma outra forma de planejar a Cidade, com ampla participação pública, garantindo o encontro das informações gerais sobre o desenvolvimento das cidades com a vivência dos diversos segmentos e interesses das classes médias e baixas, coloca-se como uma questão central a ser apropriada e fortalecida. Pensar em mudar a Cidade deve deixar de ser um atributo de urbanistas encastelados nos seus escritórios com ar condicionado e seus computadores cheios de estatísticas distantes da vida cotidiana do Povo! É preciso que cada bairro, cada comunidade tenha acesso às informações sobre os indicativos de crescimento da Cidade, sobre as necessidades de mais e melhores equipamentos urbanos, sobre as oportunidades de novas atividades econômicas que garantam a ocupação digna das trabalhadoras e dos trabalhadores e sua capacidade de sustento das suas famílias.

Para além do processo de planejamento urbano, é preciso criar uma cultura de acompanhamento das ações estatais, um sistema que permita às associações de moradores e movimentos sociais monitorarem os processos gerais de valorização da terra urbana, de investimentos públicos e de implementação dos grandes projetos da modernização capitalista. Capacitando-os com dados, informações e avaliações críticas sobre tais processos, estaremos equipando-os com instrumentos de democratização da Cidade, de socialização dos bens e políticas públicas, demonstrando a faceta mais cruel do desenvolvimento capitalista: a concentração histórica de investimentos públicos nas áreas mais abastadas, em detrimento dos bairros populares.


Reaproximação entre atores de diferentes segmentos sociais

Verifica-se, principalmente a partir de fins da década de 1990, uma retomada na mobilização e na organização da Sociedade, na questão urbana, sob novas perspectivas. Por um lado, há um fortalecimento das organizações e movimentos de bairro, bem como suas federações e entidades de representação mais ampla, nos grandes centros urbanos. Por outro lado, com os novos marcos jurídico-institucionais, tem-se uma avaliação de que a mobilização e a organização da Sociedade Civil devem estar direcionadas para uma intervenção mais qualificada em termos técnico-jurídicos e políticos – daí a propagação e constituição de fóruns populares, redes de assistência técnico-jurídica e para a requalificação de quadros técnicos em diversas estruturas governamentais em nível municipal. Tudo isso colabora para, a curto e médio prazo, uma aproximação cada vez maior entre os diferentes movimentos populares e as entidades profissionais ou os meios acadêmicos mais preocupados com uma mudança estrutural na Sociedade.

Eis uma oportunidade ímpar para o Partido Socialismo e Liberdade: a participação nos espaços já criados e a constituição de instâncias internas específicas para o encontro dessas lutas e movimentos, orientando a formação de quadros, a atuação de mandatos e a elaboração dos programas de governo!!

Estratégias e táticas

Antes de tudo, um compromisso visceral com a transparência e a universalização na disseminação de informações, interna e externamente, deve ser assumido por todos. Daí teremos um diferencial importante quando estivermos em contato ou atuando junto aos diversos segmentos sociais. Nada mais justo. Começar a luta pela justiça social na Cidade privilegiando a criação ou o fortalecimento de uma colaboração técnica e política entre os Movimentos Sociais Urbanos, definindo critérios claros de participação da militância em espaços como fóruns e conselhos populares.

Para alcançar esse novo modelo de Sociedade, em termos concretos, o PSOL precisa reconhecer nas questões da Cidade uma frente estratégica na luta contemporânea. Os primeiros objetivos poderiam ser:

? o esclarecimento do que está em jogo: o direito à presença na Cidade, principalmente, dos mais pobres; o direito de ir e vir, o acesso a bens públicos fundamentais, o aumento da discriminação sob a ideologia da “ordem urbana”;

? o desmascaramento das estratégias novas e velhas do Capital imobiliário: o obscurantismo das gestões neoliberais, a valorização da terra por decreto, o esfacelamento do licenciamento ambiental;

? a compreensão ampla das necessidades e expectativas do Povo e dos Movimentos Sociais Urbanos frente às institucionalidades (estatais ou não).

Cuidado nas alianças, ainda que transitórias

Dentro da estrutura do Partido, é preciso um esforço para a criação de um setorial de política urbana, além de incorporar tal questão à agenda das demais instâncias do partido, como tema transversal e urgente, tornando-os instrumentos para o repensar da Cidade e da inserção do Partido na Sociedade.

A luta anti-capitalista só pode ser materializada alumiando-se a realidade numa busca incessante pela transparência no espaço público e pelo reconhecimento do caráter e da natureza dos nossos adversários e dos nossos aliados. Não é possível, por exemplo, sequer cogitar alianças pontuais com qualquer um que tenha colaborado para cunhar a noção de “ordem urbana” estreitamente vinculada ao processo de criminalização da pobreza. Não é possível sentar na mesma mesa de quem institucionalmente assinou medidas de liberalização da Cidade para o grande Capital imobiliário. Não é possível apoiar ou ser apoiado por quem concorda que o “Caveirão” é um instrumento adequado e eficiente de segurança pública.

Com muita calma, nesta hora, teremos uma boa medida da distância entre um projeto revolucionário de esquerda para as disputas municipais e uma mera marcação de posição perante a mercantilização da vida e o obscurantismo na política que temos assistido nos últimos anos.

Jorge Borges é militante do Núcleo de Lutas e Reforma Urbana, membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, graduado em Geografia pela UFRJ, especialista em planejamento e uso do solo urbano pelo IPPUR/UFRJ e mestrando em Geografia pela UFF.