Os nomes, não sei. Nunca soube ou me esqueci. A desmemória é perversa. Mas, como o cego que desenvolve habilidades auditivas e táteis compensatórias, desenvolvi a capacidade de imaginar. Esse é o aspecto positivo da amnésia. Se não sei, invento. E de tão imaginativo, de tão acostumado a me equilibrar no limiar entre o que é e o que poderia ser, fui aos poucos perdendo a percepção da diferença entre tudo o que vivi ativamente na invenção e aquilo a que assisti passivamente fora dela. Enfim, como diria o outro, palavras, palavras…
Mas, retomando o fio da meada, os nomes, não os sei. Sei que ela era espigada como uma exclamação e ele encurvado feito uma interrogação. Ela toda enfática, ao passo que ele reflexivo. Enquanto ela afirmava que sem dúvida era o que era, ele, enigmático, indagava se seria mesmo. E, sendo do jeito que eram, se apaixonaram.
A história dessa paixão, não vou contá-la em seus detalhes íntimos. Não seria ético. Ponha-se na pele das personagens e diga se você gostaria de ver-se exposto assim. Não, todo casal tem direito à privacidade. Não se deve espiar a vida conjugal de ninguém. Que tenham lá suas preferências… ninguém tem nada com isso. Problema deles, e só deles e de quem mais partilhe as experiências com eles. Há muito tempo a nossa sociedade rasgou o manto do puritanismo – que, diga-se de passagem, nunca cobriu os nossos autóctones. A bem dizer, esse manto foi feito retalhos desde que os cristãos aqui aportaram e ficaram hipnotizados pelos paganismos com que se defrontaram. Tanto é que os seus escribas enviaram epístolas a El-Rei nas quais esqueciam de relatar a paisagem em favor da descrição pormenorizada das vergonhas das bugras – muito asseadas, diziam. Não lhes tiro a razão nem os censuro. Seriam hipócritas se agissem diferente. Eu, todavia, prefiro o recato, e não direi palavra que possa suscitar o escândalo dos moralistas.
Algumas coisas são óbvias. É claro que, sendo ela impulsiva e ele introspectivo, coubesse a ela toda a iniciativa da relação. E, efetivamente, assim foi. Ele não se atrevia a fazer-lhe a corte. Então, foi ela que se aproximou dele. Ela foi direta; ele, evazivo. E o ímpeto dela acabou vencendo a tibieza dele. Foi ela que segurou a mão dele, acaricou-o no rosto e deu-lhe o primeiro beijo no canto dos lábios. Sobre o beijo posso contar. Afinal, diante dos que se vêem em nossas telenovelas, esse beijo foi pudico. Nada de chupões, bocas escancaradas, línguas entremeadas e escambo de salivas como nos closes televisivos. Não. Ela bem que entreabriu de leve os lábios, muito discretamente, e apenas tocou o canto da boca dele com a ponta da língua. Uma coisa sutil. Tanto que ele ficou na dúvida e foi para casa pensando naquele beijo de despedida. Sentira ou não sentira o roçar da ponta da língua dela no canto da sua boca? E o encostar do corpo dela no seu, teria sido imotivado ou denotaria alguma intenção por parte dela? Ele se indagava, se indagava… E depois de muito perscrutar chegou à conclusão de que poderia ser que sim, mas que também poderia ser que não. Até que ela fez, de supetão, o pedido formal de namoro. Ele, pego de surpresa, solicitou um tempo para pensar. Aquilo não era coisa para se decidir de uma hora para a outra. Era uma decisão muito séria. A entrega amorosa vinha carregada de conseqüências talvez indeléveis. Ele se guardara para o amor de sua vida. Precisava saber se era realmente ela a pessoa certa. Ela, moça esperta nessas lides, mal pode esperar um dia. No dia seguinte, mudou-se de mala e cuia para a casa dele. Esse episódio vale a pena contar.
O porteiro do prédio dele já a conhecia de outras visitas e deixou que ela subisse com bagagens e acompanhada de um ilustre desconhecido pelo elevador social. Só que o ilustre era um chaveiro que abriu as portas do apartamento e fez chaves para ela. Ela entrou e se instalou como pôde, apossando-se de metade do armário dele. Depois das arrumações, tomou um banho e deitou-se na cama, agora deles, para repousar. Quando ele chegou em casa, o fato estava consumado. Ademais era um cavalheiro e jamais expulsaria uma dama do seu leito. E o concubinato se consumou como nas noites de núpcias após os casamentos de véu e grinalda na Igreja.
Ele queixou-se ao síndico do prédio. Relatou-lhe a temeridade do corrido. Este, preocupado com a segurança do condomínio, mandou o porteiro embora, por justa causa, alegando inépcia laboral. E a assembléia de condôminos, alarmada, deu todo o apoio ao ato expulsório, apesar de deixar escapar à socapa uns risinhos logo abafados.
Ela, irrequieta e instável, às vezes sumia por uns dias. Ele, pacato e metódico, não se acostumava com os sumiços dela, ainda que soubesse que ao cabo de dois ou três dias a teria de volta ao lar. Numa dessas escapadas dela, ele, não conseguindo se reconciliar com o sono, saiu a passear pela madrugada. Caminhava distraído com os pensamentos absortos nela quando tropeçou numa trouxa sobre a calçada. Atônito, viu a trouxa se mexer e de seu interior assomar a cabeça de uma criança que o fitou espantada com os olhos arregalados. Estava paralisado, sem saber o que pensar quando a criança começou a chorar. Outra trouxa maior também se mexeu e dela surgiram os rostos de um homem e de uma mulher, provavelmente os pais da criança. Ia desculpar-se, mas recuou diante dos impropérios lançados contra ele pelos dois. Ainda deu uma olhadela, de soslaio, e pareceu-lhe reconhecer o porteiro que fora posto no olho da rua. Afastou-se apressado. E, de volta a casa, deitado em seu leito sem ela, não conseguia discernir se as trouxas eram ou não o porteiro e sua família.
Desde esse dia, nunca mais saiu a caminhar pelas calçadas nas madrugadas sem ela. É que se acostumou a dormir sozinho, pois nunca mais soube dela e temia tropeçar em uma trouxa da qual ela ressurgisse em sua vida.
Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).