Ele contou quando chegavam os pratos à mesa: feijão, arroz, carne de banda engordurada e batatas; começou no assunto se gabando, como quem quer dizer coisa que valha; levantei o olhar da comida quando senti carência de atenção; o assunto passou a interessar. Era policial miúdo, segundo não disse, mas tinha função que julgava importante: torturava. Não. Disse que nos últimos anos, devido a sua habilidade em arrancar confissões, se especializara. Vieram bolinhos de arroz à mesa, ensebados; pensei: desses, passo. Após se vangloriar de sua escolha entre tantos para tão espinhosa tarefa, começou a contar o que de início já queria; falou com cara espremida, como de ruim inevitável; de socos, pontapés, da insistência de uns em resistir, resistir, resistir…. Falou repetindo, muito amargando a resistência de quem resistia. Pedi cerveja, ele cachaça. Estava quente e a comida gordurosa fazia impressão de calor maior. Suávamos na testa e no pescoço. Ele continuou narrando um caso especial, um homem que mais do que resistir o matara de impaciência; impacientou o fulano esse homem especial por uma negativa que esbarrava na evidência; o homem sabia, mas negava e apanhava; se sabia o que ele sabia e mesmo o que ele sabia não era mais importante, mas não… Foi preciso ir mais e mais fundo; fez um gesto de impaciência o homem que me contava sobre o homem que resistia; deu um gole na cachaça, jogou o corpo pra frente e me falou tão de perto que seu bafo me repugnou: ? Todo homem tem um limite, pode me acreditar. Disse como quem diz: Matei de porrada, desanquei o desgraçado, fodi sua existência, acabei com a raça, apaguei o filho da puta; mas assim não disse. Não. Falou que todo homem tem um limite. Acreditei e ele me disse, como quem encerra um assunto, que o homem que o fizera perder a paciência não havia confessado o que todos sabiam. Não perguntei o que todos sabiam, nem o que acontecera ao homem que resistira. O prato feito era maçaroca gordurosa que só engoli ajudado com goles de cerveja em cada garfada. Seguiu falando o homem que constatara que o homem tem um limite; falou de tudo; mudou; pressentiu, creio, minha fraqueza para esses assuntos. Depois pedimos a conta e ele foi embora, como um homem comum.
Flávio Braga é romancista, roteirista e editor.