Quarenta e três anos depois, cá estou novamente com minha velha camisa no cenário de acontecimento que marcou minha juventude. A casa veio abaixo, mas o terreno foi recentemente ocupado pelos estudantes, arrumado com palco, som, cadeiras e painéis para um show e exposição de fotos históricas. O evento comemora a retomada vitoriosa do espaço usurpado pela ditadura, com muita gente presente à celebração neste 1º de abril – políticos, jornalistas, estudantes, ex-dirigentes das entidades, cidadãos.
Enquanto observava as fotos expostas, comentei em voz alta que estivera no local naquele dia. Alguns estudantes escutaram o que eu disse, notaram a camisa que eu usava e começaram a me perguntar sobre o que ocorrera. Organizaram uma roda num canto e chamaram companheiros para me ouvir.
*
Na véspera iniciáramos uma greve contra possíveis tentativas de derrubada do governo e em defesa da legalidade. O país vivia período conturbado, forças se articulavam para reagir à possibilidade de reformas. Eu fazia o primeiro ano de Engenharia e participava das atividades culturais, políticas e esportivas do diretório acadêmico. Entidades estudantis tinham marcado um torneio de tênis de mesa em que eu representaria a escola e, embora fosse difícil que se realizasse num dia de greve, não quis deixar de ir. No diretório jogava com frequência partidas de tênis de mesa. Namorava uma menina do Serviço Social, a Lúcia, que conheci numa festa.
Saí de casa debaixo de chuva fina assobiando “A canção do subdesenvolvido”, do Carlos Lyra com o Chico de Assis, que eu e o broto gostávamos de ouvir e de cantar. Era uma espécie de hino do Centro Popular de Cultura, associado à União Nacional dos Estudantes. Tínhamos assistido à apresentação e ouvíamos sempre o compacto com a música. Enquanto andava, pensava na Lúcia, e repetia mentalmente os versos que falavam de amor e ironizavam o país:
“O Brasil é uma terra de amores…”
Eu morava no Catete com meus pais. Naquele fim de tarde de março vestia calça marrom e camisa bege de tergal. O encontro com o Bolão, meu companheiro de time, seria às cinco da tarde, na porta da UNE. Ao seguir em direção à praia me lembrei do que meu pai dissera no café da manhã – o governador se entrincheirara no Palácio Guanabara, o presidente se encontrava no Rio. Naquele dia o velho fizera uma caminhada a Laranjeiras. Na ida tinha passado pelo Parque Guinle, onde, espiando entre os flamboyants, deduziu que Jango estava no palácio, pois dois tanques de guerra guardavam o prédio. Na Rua Pinheiro Machado, em frente ao palácio do governo estadual, fora erguida uma barricada com caminhões e sacos de areia. A Polícia Militar estava de prontidão. O governador Carlos Lacerda temia as tropas fiéis ao presidente ou, quem sabe, uma invasão do povo ao palácio. O medo não era à toa: alguns anos antes tinha mandado fechar a sede da entidade estudantil e combatia os que queriam reformas.
Enquanto andava na praia do Flamengo lembrei-me do comício em que estivera com colegas, há algumas semanas, na Central do Brasil. Vibramos com a massa humana que se reuniu para ouvir a liderança sindical, estudantil, política e a esperada fala do presidente. Foi forte a impressão provocada pelo discurso indignado de Jango naquele dia, ao lado da bela esposa, quando comunicou à multidão propostas ousadas, entre as quais a desapropriação de terras para a reforma agrária e a encampação de refinarias de petróleo. Saímos preocupados com a denúncia da campanha organizada com o propósito de prejudicar o comício. Havia pressões de todos os lados: dos que temiam mudanças e dos que não aceitavam acordos. O país poderia caminhar em direção às reformas de base, mas havia o risco de dar tudo errado.
Na caminhada, olhando o Cara de Cão à minha frente, pensei no texto que o departamento cultural de nosso diretório tinha distribuído com a fala do ministro da Educação. Não me saía da cabeça seu entendimento sobre a educação para o desenvolvimento e a cultura para a liberdade. Nossa formação deveria se comprometer com a mudança das estruturas que impediam a expressão da cultura.
Eu seguia em direção à UNE, quando passou por minha mente o que assistira na véspera pela televisão. A Associação de Sargentos comemorava no Automóvel Clube a posse da diretoria com a presença de marinheiros e de Jango. Em seu discurso ele alertou sobre grupos empenhados em barrar conquistas populares, inimigos da democracia e à resposta de Dom Hélder aos que – em nome da igreja – atacavam as reformas. Defendeu a mudança constitucional e a regulamentação da remessa de lucros. A polarização política era evidente.
Em poucos minutos cheguei ao Bar Cabanas, aqui ao lado, que hoje tem outro nome. A canção ainda me martelava a cabeça:
“(…) Debaixo de um céu de anil,
Encontrareis um gigante deitado:
Santa Cruz, hoje o Brasil”.
Pedi pão na chapa com manteiga e café preto. Assim estaria com o estômago forrado, o torneio poderia ir até tarde. Enquanto comia o pão crocante no balcão do bar, observava a porta da entidade. Bolão ainda não dera sinal de vida. Havia um movimento pouco usual. Reuni mentalmente alguns fatos. A UNE sofrera atentados e era guardada por fuzileiros. A igreja católica conservadora, setores da classe média e a elite colocaram a Marcha da Família com Deus pela Liberdade nas ruas de São Paulo, do Rio e de outros Estados. O que seria agora?
Ao chegar à porta do prédio um jovem pediu minha identidade. Expliquei que estava ali para participar de um campeonato de tênis de mesa organizado por nossa Confederação de Desporto. Quantas vezes eu entrara no prédio como em minha casa, sem nenhuma explicação ou documento! Ele me olhou com ar irônico. O prédio foi metralhado e você vem aqui jogar pingue-pongue, companheiro? Fiquei sem graça. Olhei para o alto do edifício e vi uma faixa com a inscrição: “A Ubes repudia a marcha dos golpistas”. Mostrei a carteira do diretório e entrei, nem queria saber. Fui até o local onde seria o torneio e não encontrei ninguém. Agitação, gente reunida, alguns subiam, outros desciam a escada, às pressas pelos corredores. Perguntei a um estudante o que estava acontecendo.
O general Mourão conseguiu apoio militar. Está vindo de Juiz de Fora com tropas.
A situação era muito grave. Eu devia ficar um pouco mais e ajudar em alguma tarefa. Precisávamos nos organizar para manifestações. Comecei a andar pelo prédio. Numa sala do térreo encontrei dois estudantes que, aturdidos, tentavam pôr para funcionar um mimeógrafo elétrico. Queriam imprimir um panfleto. Eu conhecia o equipamento, utilizara um idêntico na impressão de boletins da igreja que frequentava e ofereci ajuda. Com engenharia acertei o estêncil e a engrenagem passou a rodar. Quando algumas pilhas de panfletos estavam prontas, além do suor que ensopou minhas costas, eu estampava na camisa de tergal uma grande mancha da tinta preta usada no trabalho. Dirigi um “até amanhã” aos companheiros e fiz o caminho de volta para casa. Era 31 de março de 1964.
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Meu pai me esperava na sala, a mãe já dormia. O velho era fumante, tinha uma tosse cavernosa. Olhou para mim e não pode deixar de ver na camisa a mancha que aparecia como bandeira numa passeata. Passei a mão sobre o tecido, como se quisesse limpá-lo. Onde estava, filho, na UNE de novo? Expliquei que fora até lá para o torneio e, como a situação era tensa, dera uma ajuda na impressão de um panfleto. Ia lavar a camisa e tudo ficaria bem. O pai não deixou que eu saísse da sala, me segurou pelo braço. Torneio? Espera aí, Marcos, quero lembrá-lo de uma história, aliás, já conhecida sua.
Fiquei irritado, o coroa não entendia que eu não precisava mais de tanta proteção. Queria dormir, era tarde, no dia seguinte o movimento seria grande e ainda pretendia acertar um encontro com a Lúcia. Não era necessário me contar de novo que fora desancado pela polícia quando rapaz e por isso sofria até hoje de dores no lombo. Ele insistiu, queria me envolver em suas emoções e convencer a ter cuidado. Você VAI OUVIR AGORA, disse, me puxando pela camisa.
Foi no final da primeira guerra, época em que a gripe espanhola matava no mundo todo e já chegara ao Rio. Até o presidente Rodrigues Alves tinha sido vítima dela. Eu era rapazola e me envolvi com os socialistas, por meio de um amigo do sindicato. Consegui emprego na Cantareira, a empresa das barcas que fazia o trajeto Rio – Niterói. Trabalhava na parte mecânica e tinha parado de estudar. Era necessário participar das despesas de casa. Naquele ano houve greves operárias importantes, em vários pontos do país, pela melhoria dos salários e das condições de trabalho. Nossa greve na Cantareira foi muito forte, mas a repressão também. Eu estava na gráfica quando a polícia baixou lá. Foi uma pancadaria só. Horas depois fui encontrado por companheiros desacordado. Podia ter morrido na greve, como outros morreram. Meus pais decidiram que eu não continuaria enfurnado no porão das máquinas e voltaria à escola.
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Levantei-me cedo, antes do pai e da mãe. Lavei a camisa, mas não havia o que tirasse a mancha. Fiz café às pressas, engoli o pão e sai. Quase corria em direção à UNE. Dobrei a esquina da praia e não gostei do que vi – trânsito e fumaça. Logo adiante, gente parada na calçada. Uma fogueira. Tremi. Homens estranhos dominavam a cena. Socorreu-me a lembrança do refrão “subdesenvolvido, subdesenvolvido”, que comecei a assobiar nervoso, como se a estudantada estivesse toda ali, comigo. Lúcia não aparecera.
Pedaços de móveis e de equipamentos, papéis, fotos, queimavam ao lado de uma palmeira solitária, também sujeita ao fogo, em cujo tronco costumávamos colar cartazes. O canteiro com mato, em que fora plantada, ardia. O vento espalhava fumaça e cinzas, virava páginas. Balbuciei desolado um verso da canção, que não me abandonou:
“O país passou a ser um bom quintal…”
Algumas pessoas próximas à fogueira, outras dos carros, olhavam surpresas. O prédio número cento e trinta e dois da Praia do Flamengo soltava fumaça como chaminé, o velho prédio da UNE. Eu não conseguia dar um passo. Estivera ali há poucas horas e não podia acreditar no que via. O que tinha acontecido aos diretores, estudantes, artistas?
Minha pele começava a arder. Alguém comentou que os bombeiros já tinham sido chamados, mas o fogo continuava. Soube que companheiros saíram pelo telhado. Panfletos atirados e espalhados pela rua, como se fosse uma comemoração. Por uma janela eram jogados cadernos, documentos, discos, livros, caixas. Algo ficou preso no fio elétrico. Um pedaço de alguma coisa voou pela varanda do segundo andar e se espatifou na calçada. Estourou uma bomba lá dentro. Gritos. Correria. Confusão.
Entre um equipamento quebrado e madeiras – eu não podia acreditar – vi uma sucata queimada e retorcida que lembrava o mimeógrafo de estêncil, e montes de panfletos alimentando labaredas. Cheguei mais perto, olhei para o chão. Podia reconhecer os que pegavam fogo logo ali, a meus pés. O corpo ardia, eu estava no meio da fogueira. Na mente, alegrias e sofrimentos da luta. No coração filmes, poemas, peças, debates que transformaram minha vida. O estômago queimava. Tudo se apagaria ao final da fogueira? Palavrões queriam sair com o café da manhã. Veio à tona o trecho da canção:
“Na boca do forno, forno.”
Não consegui ficar ali. Virei de costas para o prédio em chamas. A Baía de Guanabara continuava calma. Queria mergulhar naquela água, mesmo misturada a esgoto. Melhor que assistir àquele espetáculo e sentir o corpo queimar. A paisagem estava lá, no mesmo lugar. Respirei fundo.
Lúcia finalmente chegou, me segurou pela mão e disse baixo, ao pé do ouvido: é o prédio que esse bando depreda. A história de lutas continua. A entidade somos nós!
Estudantes nos chamaram para ir à Cinelândia. Suprimi o desejo de mergulhar. Esqueci as palavras prudentes de meu pai. Num impulso seguimos com os companheiros.
A Avenida Rio Branco estava vazia, fora interditada ao trânsito. Na Cinelândia nos juntamos aos que gritavam nervosas palavras de ordem. Depois de algum tempo percebi um tanque despontando lá longe, seguido por outros, e soldados armados que caminhavam em direção à praça. A presença de um sargento em cima do aparato de guerra nos deixou na expectativa de que os sargentos apoiariam a legalidade, afinal, eram aliados do governo. Dois dias antes o presidente estivera na posse da diretoria de sua associação.
O primeiro tanque se aproximou e se posicionou em frente ao Clube Militar. A multidão estava tensa. O soldado que manejava o canhão começou a girá-lo devagar, até apontá-lo na direção dos manifestantes. Surpresa geral. Exclamações. Protestos. Desespero.
É o inimigo. O governo caiu!
Abracei minha namorada. Choramos agarrados. Quando tomei o rumo de casa, depois de deixá-la numa condução, me veio à cabeça um trecho da canção:
“Subdesenvolvida, subdesenvolvida.
Essa é que é a vida nacional.”
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Não era um primeiro de abril.
Segui a pé pela beira-mar chutando uma lata amassada que encontrei no meio-fio. Um cachorro me seguiu da Glória à Rua do Catete. Chovia.
Ao chegar em casa desabei no ombro do pai. Disse-lhe: queimaram tudo, Jango caiu. Naquele dia me abraçou apertado. Contei que uma edição inteira de um livro virara cinzas. Para o poeta que o escrevera, a cultura podia transformar a sociedade, devia estar a serviço do povo. Artistas e intelectuais deviam estar mergulhados na realidade do país. O que poderia estar errado naquele pensamento para merecer a fogueira?
Meu pai tossiu forte, limpou a garganta e depois de alguns segundos em silêncio disse, sem conseguir conter a emoção: é purificar pelo fogo. Intolerância, golpe! Então se controlou. Um vinco fundo surgiu entre as sobrancelhas. Começou a falar em tom professoral sobre tentativas de destruição do conhecimento através do fogo, desde os ataques à biblioteca da Alexandria. Algumas vezes queimaram não só os livros, mas os autores também, como na Inquisição. Outras, perseguiram aqueles que não pensavam como nazistas: Freud, Einstein, Thomas Mann. Esse golpe não pode destruir a liberdade de pensamento, a democracia, o que avançamos em matéria de cultura.
O pai tinha razão. Por que os golpistas tiveram que metralhar, saquear e queimar a entidade?
Muitos interesses foram ameaçados. Vamos esperar que Jango seja reconduzido sob condições.
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O pai estava equivocado naquela avaliação. No mesmo ano a UNE foi colocada na ilegalidade. O trabalho do CPC entrou em recesso. No ano seguinte, contrariando meu velho, aderi à clandestinidade.
Quando saí da casa de meus pais, entre meus pertences levei para o conjugado que aluguei no Catete a camisa de tergal manchada. Sempre que algum companheiro desaparecia – preso ou assassinado pela mão pesada da ditadura – me lembrava do que acontecera naquele dia, sinal dos anos de violência que se seguiriam.
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Dezesseis anos depois vesti de novo a velha camisa. Veio à lembrança a conversa que tive com meu pai. Mesmo sem força, o governo militar mandara demolir o prédio que não abrigava mais nada e – apesar da reação de milhares de estudantes e cidadãos em ato público, sob violenta repressão – conseguiu destruir a velha casa das lutas estudantis. Naquele dia um brucutu lançou água com tinta para marcar os manifestantes. Minha camisa ganhou outra mancha, agora colorida, que se espalhou no peito, ao lado da mancha preta.
Agosto de 2010
Rute Gusmão