Gracilianos Ramos livroReavaliada 120 anos depois de seu início, em 27 de outubro de 1892, a extraordinária trajetória pessoal, literária, intelectual e política de Graciliano Ramos contada por seu melhor biógrafo ganha nova edição, ampliada e revisada, pela Boitempo Editorial. O velho Graça, de Dênis de Moraes, nos conduz pelos sessenta anos de história de um dos maiores narradores da literatura brasileira, com todo o rigor da documentação e dos depoimentos pessoais daqueles que o cercavam. O livro chega aos leitores com acréscimos que acentuam o conhecimento pormenorizado da vida e da obra do escritor alagoano. Entre as novidades estão um bem-cuidado caderno iconográfico, com imagens raras e até inéditas, e a mais esclarecedora entrevista concedida pelo escritor, em 1944, nunca antes publicada em livro.

Publicado pela primeira vez no centenário de Graciliano Ramos, o trabalho de Moraes foi recebido com grande entusiasmo pela crítica, por se tratar da primeira “biografia de conjunto” sobre o romancista, como classificou Carlos Nelson Coutinho no prefácio.

O estilo jornalístico do biógrafo se perfaz num rigoroso e amplo trabalho de pesquisa – com texto ao mesmo tempo leve e erudito, escrito com sóbria simplicidade, O velho Graça refaz a trajetória luminosa e sofrida de Graciliano. Tendo como objeto de estudo um escritor aferrado ao seu tempo, Moraes desenha o pano de fundo de cinco décadas de grande efervescência política e de transformações aceleradas no processo modernizador do Brasil.

A garimpagem em arquivos públicos e privados de Rio de Janeiro, São Paulo e Alagoas, assim como as dezenas de testemunhos de amigos, parentes, artistas, intelectuais e companheiros de geração enriqueceram sobremaneira o trabalho. Com argúcia de historiador e sensibilidade literária, Moraes traça a interligação entre as várias personas de Graciliano Ramos: o menino traumatizado pelas surras na infância; o jovem autodidata que lia Balzac, Zola e Marx em francês; o mítico comerciante da loja Sincera; o revolucionário prefeito de Palmeira dos Índios; o zeloso diretor da Imprensa Oficial e da Instrução Pública de Alagoas; o preso político no inferno da Ilha Grande; o escritor sufocado por apuros financeiros; o estilista da palavra na redação do Correio da Manhã; o militante comunista aos esbarrões com a burocracia partidária.

Sem cair na armadilha do biografismo, Moraes recompõe a emergência dessa complexa figura, reconstituindo no percurso dialético de seus diversos momentos alguns dilemas fundamentais de nossa formação histórica. “Temos um Graciliano sem retoques: duro, mas apaixonado; frio e áspero na superfície da fala e do gesto, mas ardente e sempre humano na fonte da vida pessoal”, diz na capa o professor Alfredo Bosi, que também encontrou na biografia o cruzamento de itinerários do homem capaz de refletir, como num jogo de espelhos, a somatória de vivências acumuladas: “a paixão pela palavra nele precedeu e acompanhou a opção política que, por sua vez, transcendeu (mas jamais renegou) a adesão partidária”.

Para o autor, remontar o quebra-cabeça de Graciliano assemelhou-se ao ofício de artesão, já que os fragmentos do passado precisavam ser pacientemente reunidos e dispostos com a máxima coerência possível, a despeito da pluralidade de suas significações.

A necessidade de correlacionar peripécias, valores e sentimentos foi inspirada em uma passagem do prólogo de Memórias do Cárcere. O escritor consciente, assinala Graciliano, não deve esquivar-se dos zigue-zagues e tumultos próprios de uma existência. “Esforcei-me para mirar o objeto sem perder de vista suas interfaces e imbricações, tratando de averiguar convicções, dúvidas, anseios, vicissitudes e triunfos a fim de estabelecer conexões com a esfera ficcional engendrada por ele. Nas tensões entre o homem, a atmosfera social e a criação literária recolhi pistas que me levassem às motivações familiares, afetivas, estéticas, ideológicas e políticas presentes em sua intervenção na realidade concreta”, completa Moraes. O resultado é uma história de projeções e influências, de paradoxos e contrastes, mas, sobretudo, de coerência na busca incessante do que é essencial à vida.

Trecho do livro

“Fico imaginando o que Graciliano acharia de ter sido biografado. Talvez fingisse desprezo por sua escolha. O que me leva a crer nisso? Uma declaração feita por ele, em novembro de 1937, em uma carta ao tradutor argentino Raúl Navarro, que lhe pedira um currículo sumário para anexar a um conto em vias de publicação em Buenos Aires.

“Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia. Nunca fui literato, até pouco tempo vivia na roça e negociava. Por infelicidade, virei prefeito no interior de Alagoas e escrevi uns relatórios que me desgraçaram. Veja o senhor como coisas aparentemente inofensivas inutilizam um cidadão. Depois que redigi esses infames relatórios, os jornais e o governo resolveram não me deixar em paz. Houve uma série de desastres: mudanças, intrigas, cargos públicos, hospital, coisas piores e três romances fabricados em situações horríveis – Caetés, publicado em 1933, S. Bernardo, em 1934, e Angústia, em 1936. Evidentemente, isso não dá para uma biografia. Que hei de fazer? Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras, mas talvez seja melhor deixá-las para romances.”

Dênis de Moraes nasceu no Rio de Janeiro em 1954. É doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), sediado em Buenos Aires. Atualmente, é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É autor e organizador de mais de vinte livros, dos quais oito foram editados no exterior (Argentina, Espanha, Cuba e México). Além de O velho Graça, publicou duas biografias de intelectuais e artistas de esquerda: Vianinha, cúmplice da paixão: uma biografia de Oduvaldo Vianna Filho (Rio de Janeiro, Record, 2000; São Paulo, Expressão Popular, no prelo) e O rebelde do traço: a vida de Henfil (Rio de Janeiro, José Olympio, 1996). Ainda, com Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas (Petrópolis, Vozes, 1982; Rio de Janeiro, Mauad, 1998), obra baseada no único depoimento concedido pelo líder comunista Luiz Carlos Prestes sobre sua trajetória.

Fonte: Carta Maior, 23/10/2012

 


120 anos de Graciliano Ramos

Luiz Ricardo Leitão

Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil

Nascido em Quebrangulo, no interior das Alagoas, em 27 de outubro de 1892, o dileto e genial mestre Graciliano Ramos teria completado na última semana seu 120º aniversário. Infelizmente, em meio às escaramuças do segundo turno eleitoral nesta nossa Bruzundanga e à bulha midiática pelos capítulos finais de mais um folhetim eletrônico global, a data passou quase despercebida entre nós. Houve belas homenagens, sem dúvida, entre elas o relançamento da primorosa biografia escrita por Dênis de Moraes (O Velho Graça) e a edição de Garranchos, compilação de textos a cargo de Thiago Mio Salla. O escritor, contudo, merecia muito mais – e espero que, em breve, tratemos de saldar essa dívida, celebrando com pompa e circunstância as seis décadas de sua dolorosa e precoce partida deste planeta azul em 1953.

Ler Graciliano é uma experiência imprescindível para quem deseja conhecer, pelos atalhos mágicos da ficção, os segredos mais profundos deste país de latifundiários que se chama Brasil. Desde o tempo das sesmarias dos finados Zacarias, ainda no século 16, durante a primeira onda de globalização do Novo Mundo, ser proprietário de vastas extensões de terra é um símbolo de poder na Terra de Santa Cruz (que o diga FHC, ex-sociólogo dos príncipes, cioso de sua brejeira fazenda em Buritis). Muitos pensadores brasileiros esmiuçaram essa verdade tropical, mas poucos romancistas souberam apreender com sufi ciente lucidez e imaginação o singularíssimo arranjo de classes graças ao qual os velhos coronéis da casa grande ludibriaram a senzala e se perpetuaram no imaginário nacional e também na vida prosaica da República.

O seco e agreste alagoano, autor de obras-primas como São Bernardo e Vidas Secas, foi decerto o mais agudo crítico dessa fórmula quase prussiana de modernização sem ruptura que dita o processo de evolução capitalista no país. Isso não quer dizer que, antes da criação de personagens como Paulo Honório ou Fabiano & Sinha Vitória, não tenha havido outros intérpretes clarividentes de nossa truncada e excludente história. A começar por Machado de Assis: quando lemos Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e nos espantamos com os caprichos de seu narrador, capaz de montar a cavalo em crianças escravas e prometer ao leitor eventos que nunca relatará, a associação com Fernando Collor ou FHC é imediata. O menino é o pai do homem… No plano retórico, a modernidade é uma lei natural, verdadeira panaceia para os males dos “descamisados”; na vida real, “esqueçam tudo o que escrevi” – e também aquilo que casualmente se disse em campanha.

Machado, porém, não quis sair da cidade. Segundo ele próprio escreveu, o mundo “começa aqui no Cais da Glória ou na Rua do Ouvidor e acaba no Cemitério de São João Batista. Ouço que há uns mares tenebrosos para os lados da ponta do Caju, mas eu sou um velho incrédulo” (Esaú e Jacó). Foi, de fato, uma pena. Se tivesse seguido o exemplo de Lima Barreto (outro mulato extraordinário, mas quase um marginal na cidade das letras), o criador de Brás Cubas talvez nos tivesse revelado aspectos ainda mais sutis da nossa modernização, em um país onde o progresso é fruto de uma aliança secular do latifúndio com a burguesia urbana – e cujo capital industrial e financeiro, em última instância, também provém desse pacto turbulento, porém eficaz, entre as classes dominantes do campo e da cidade. Cronista das vidas secas e agrestes, o mestre Graça parecia querer nos dizer que, nesta cultura da modernização sem ruptura, o velho ainda sabe usar a roupagem do novo, ditando o curso da transformação capitalista sob o ritmo dos alqueires infinitos. Em suas contínuas versões, esta articula golpes e contragolpes, rastreia as turbulências prestes a explodir e antecipa- se à sua propagação. Seduz alguma gente e, se necessário, reprime outras tantas. Até quando, porém, o fôlego lhe sobrará? Só há curvas onde as retas foram impossíveis. Creio que era nisso que o vaqueiro Graciliano cismava à porta de seu cárcere imemorial… Axé, Velho Graça!

Fonte: Brasil de Fato, 30/10/2012