O infoGrécia traduziu o discurso da presidente do Parlamento da Grécia, na votação da semana passada que aprovou o primeiro pacote de medidas imposto por Bruxelas para avançar com o programa de financiamento ao país. Zoe Konstantopoulou diz não ter dúvidas de que “Alexis Tsipras foi chantageado com a sobrevivência do seu povo”.
Senhoras e Senhores, caros colegas,
Começo por agradecer ao especialista independente da ONU para a Dívida e os Direitos Humanos, Bohoslavsky, que interveio hoje, pela terceira vez neste último mês e meio, com o seu apelo público com o propósito de proteger a população grega das novas reduções dos seus direitos sociais, direitos sociais estes que já foram minados e violados.
Quero também agradecer ao coordenador científico do Comité para a Verdade sobre a Dívida Pública, Éric Toussaint, que, com a sua intervenção pública de hoje, indica e propõe uma solução para a Grécia, para o povo grego. Esta solução pressupõe a abolição da dívida odiosa, ilegal e ilegítima; esta dívida que alguns tentam, por todos os meios, transferir para o povo grego e para as novas gerações. Estas gerações que não vos devem nada, senhores da Nova Democracia e do PASOK. Vocês, que governaram durante 40 anos, outorgam hoje a cada recém-nascido, desde a sua primeira respiração, uma dívida de 32 500 euros.
Quero também agradecer a estas pessoas, a estes movimentos e forças políticas na Europa que se mexeram e mobilizaram dizendo que isto é um golpe de Estado contra a Grécia, mas também contra o seu governo. Quero agradecer também a todos os economistas, pessoas da cultura, das artes, das letras, aos intelectuais, que não estão corrompidos pelo poder nem pela sujidade dos programas de austeridade, e que se lhes opuseram afirmando que é inaceitável, numa civilização contemporânea, em 2015, que uma ação de vingança autoritária e antidemocrática tenha lugar contra este povo e este governo de esquerda e de oposição ao memorando.
Caros e caras colegas, esta noite é um dia negro para a democracia na Grécia e na Europa. Mas é também um dia negro para o parlamento grego porque, com uma chantagem cruel, proveniente da União Europeia e dirigida primeiro ao governo e depois aos deputados, o parlamento foi chamado a ratificar, em 2h30 e sem discussões de fundo, o enterro da sua própria função, a ceder a soberania nacional e a hipotecar os bens públicos, tendo como horizonte a sua liquidação por um novo e bem mais monstruoso TAIPED (fundo privado de gestão de bens públicos), que o meu partido, o Syriza, chamava e chama “setor produtor de escândalos”. É também chamado a assumir a totalidade da dívida e de todas as obrigações a ela associadas, mesmo que esta dívida seja insustentável, odiosa, ilegítima e ilegal. Além disso, é chamado a ratificar mais cortes nas pensões, cortes que foram considerados anticonstitucionais pelo Supremo Tribunal Administrativo e que foram votados em novembro de 2012, quando a totalidade do grupo parlamentar do Syriza mostrou cartazes que diziam “Vocês destruíram o país, é hora de irem embora”, unindo-se assim ao povo e à sociedade, de onde provém e aos quais pertence. O parlamento foi chamado a ratificar mais cortes na despesa pública, apesar de esses gastos estarem abaixo da média europeia, apesar da aceitação de superavit primários irrealizáveis conduzirem a uma maior recessão, apesar da aceitação do facto de que o processo democrático do referendo gerou uma perda de confiança. Foi também chamado a ratificar o restabelecimento da confiança numa legislação sob controlo externo, em prazos irrealistas e com a aceitação humilhante de des-legislar, abolir, leis que nós votamos aqui no parlamento.
Se este projeto de lei, que contém referências a um futuro terceiro memorando, fosse trazido pelos partidos que neste país são pró-memorando, isto é, a Nova Democracia, o PASOK, o Potami, o DIMAR e o LAOS, eu dirigir-me-ia ao parlamento com um discurso denunciando, uma a uma, todas as suas disposições. No entanto, é o governo de esquerda e das forças antimemorando que traz este projeto de lei, é o governo do Syriza e do ANEL, que nunca teve como objetivo a introdução e a aplicação de memorandos, mas, pelo contrário, a libertação do país destes últimos. Este governo que não acredita que os memorandos da submissão e da austeridade sejam um remédio para a economia, mas que defende, há muitos anos, que eles são a receita errada, o veneno que mata a sociedade e que sabe até que ponto eles são destrutivos.
Não há nenhuma dúvida de que o governo age sob coação, que o primeiro-ministro foi cruel e implacavelmente chantageado, tendo sido usado, como instrumento de chantagem, a sobrevivência do seu povo. E não há nenhuma dúvida que se esta chantagem for ratificada esta noite, ninguém impedirá a sua repetição, não apenas contra nós, mas também contra outros povos e outros governos. Aliás, nós não somos os primeiros, Chipre precedeu-nos em março de 2013, o mesmo mês em que dois estudantes morreram em Larissa por causa do fumo de um fogareiro, pois não tinham dinheiro para se aquecer de outra forma, o mesmo ano em que um jovem de 18 anos perdeu a vida para evitar o controlo dos bilhetes do autocarro, pois não tinha meios para pagar, o mesmo ano em que uma menina de 10 anos, de Salónica, Sarah, perdeu também ela a vida por causa das emanações de um fogareiro na casa onde vivia há dois meses, sem eletricidade, com a sua mãe imigrante. O memorando provocou uma crise humanitária na Grécia e os nossos ditos parceiros sabem-no. Não têm nenhum direito de ameaçar o governo e o primeiro-ministro com uma destruição humanitária total, com um holocausto real, que eles mesmos orquestraram com a recusa de dotar os bancos de liquidez, a fim de forçar o primeiro-ministro a ceder e a consentir em tudo aquilo a que se tem oposto, a tudo aquilo contra o qual se tem continuadamente batido. Trata-se de um golpe de Estado, da abolição da democracia, da abolição da função constitucional e de uma imposição de condições de vida que certamente conduzirão – em parte ou totalmente – à destruição (de uma parte ou do conjunto) da população grega. Trata-se, pois, de um crime contra a humanidade e de um genocídio social.
Creio que o primeiro-ministro fez tudo o que lhe era possível para se opor a esta chantagem. Ninguém o pode negar. E ninguém pode subestimar a coragem, o desinteresse e a grandeza moral da sua intenção – hoje – de proceder à sua autodestruição política, considerando que assim servirá o povo e a sociedade. Creio que o parlamento e o grupo parlamentar do Syriza não devem permitir que tal coisa aconteça.
Considero que o parlamento deve impedir a realização do plano do “parêntesis de esquerda”, posto em prática por espíritos perversos que querem transformar o governo de esquerda em diretor e executante do memorando. Esses que nos querem obrigar, um por um e uma por uma, a dizer e a fazer o oposto de tudo aquilo pelo qual nos temos batido, que nos querem humilhar ao ponto de não nos podermos reconhecer a nós próprios e que a sociedade, a nossa aliada natural, não possa mais reconhecer-nos como povo, de cuja carne somos a carne.
Não temos o direito de deixar isso acontecer. Não por causa de um suposto orgulho ou de um dogmatismo ideológico, mas por causa da consciência profunda de que será uma ferida incurável para a moral coletiva e social, pelo que pulsa e é encorajado e, sobretudo, pela raiva e grandeza a crescer nas jovens gerações. Por todos aqueles e todas aquelas que acreditaram em nós, não por lhe termos prometido contratos ou privilégios, mas porque confiaram na nossa persistência, no nosso desinteresse, nas nossas lutas e nos nossos compromissos.
O plano “parêntesis de esquerda” é o mesmo plano que queria que o governo de esquerda e da luta contra o memorando fosse desacreditado. O plano que queria que o povo ficasse desesperado e sem apoios. Que quer a sociedade a insurgir-se. E que quer que certos poderes de desestabilização, como aqueles que vimos agir repetidamente no nosso país, reivindiquem a sua superioridade. Querem ver os interesses do sistema de corrupção manobrar os seus fantoches, designar os seus representantes para a liderança do ELSTAT, onde nos arriscamos a ter de manter o senhor Georgiou, responsável pela submissão do país ao memorando, na sede do Banco da Grécia, onde ainda nos sujeitamos ao senhor Stournaras, na liderança do Fundo de Estabilidade Financeira e do TAIPED (fundo privado de gestão de bens públicos).
Este plano quer que aqueles que destruíram o país ressuscitem enquanto opinadores qualificados, quando deviam era prestar contas à história e à justiça. Quer também, infelizmente, que as forças da extrema-direita e do fascismo, saídas diretamente do nosso passado horroroso, assumam a representação verdadeira da sociedade e usurpem as lutas do povo. Ninguém tem o direito de fingir que não o vê. Esta sessão é também o prelúdio de tudo isto.
Senhoras e senhores, caros colegas, e agora dirijo-me aos meus camaradas do Syriza. Em democracia não há impasse. O povo falou. Disse um grande NÃO aos ultimatos, às chantagens, às intimidações, à propaganda e ao terror. NÃO aos memorandos. Não temos o direito de transformar, com o nosso voto, este NÃO do povo num SIM. Não temos o direito de o interpretar como um NÃO com condições. Cada uma das medidas presentes no referido acordo foi rejeitada pelos cidadãos com uma maioria ensurdecedora. Somos obrigados a defender o seu veredito, porque o nosso poder reside neles. E porque nós, contrariamente aos outros, nunca reivindicamos ou quisemos o poder para o partilharmos entre nós ou para dele nos aproveitarmos, como o fizeram as forças do memorando e do antigo sistema político do bipartidarismo, vicioso e cleptocrático, do PASOK e da Nova Democracia, que têm, atualmente, a audácia de nos dar lições. Nós reivindicamos o poder para o devolvermos ao povo. O NÃO do povo não foi um NÃO condicional. O NÃO do povo não foi um NÃO entre aspas. Aqueles que pensam que o NÃO do referendo se exprimiu sob a condição de que o país fica no Euro devem reformular a questão e colocá-la novamente ao povo. Mas a questão nunca poderá ser aquela a que a troika e o seu novo ultimato querem que respondamos. A questão nunca poderá ser entre o euro ou a democracia, o euro ou os direitos humanos, o euro ou a Europa. Porque se tratam de questões reacionárias, antidemocráticas, antieuropeias e anti-humanitárias. As questões perante as quais o povo tem o saber, o vigor e a experiência histórica para lhes responder.
Mas, em algum momento, pois alguns têm a audácia de falar do lobby do dracma, vai ser preciso falar também do lobby do sistema Simitis, do lobby da modernização, que continua a reivindicar governar o país através do sistema de corrupção e se quer justificar por meio de ações profundamente antidemocráticas e putshistas, que aqui foi trazida pela intervenção do senhor Vanizelos, quando pedia que o parlamento aprovasse o documento, isto é, que ratificasse um documento sem fundamento, de modo a apresentar provas de submissão e a criar situações sem retorno possível.
Não tenho nenhuma dúvida, e digo-o com toda a clarividência da minha consciência tranquila, porque é com a nossa consciência que devemos falar nestes momentos, que tanto o governo como o povo estão realmente do lado do NÃO na votação de hoje. Não há lugar para ilusões. O grupo parlamentar deve ajudar o primeiro-ministro e o governo, que estão sob a pressão da chantagem, e não dar-lhes o golpe de misericórdia com um SIM, pensando que isso os ajuda, ou pedir-lhes que façam chantagem, coisa que o primeiro-ministro não fez, ao contrário dos seus predecessores, honra lhe seja feita.
As causas da esquerda e da democracia, da emancipação social e popular e da libertação são todas as resistências, pequenas e grandes, que a servem. Se o parlamento não resiste hoje à chantagem, ceder-lhe-á novamente. Se legisla aceitando ultimatos, fá-lo-á novamente, e ver-se-á constrangido a fazê-lo de novo muito proximamente. Se cede, engana-se, se se deixa paralisar, encontrar-se-á perante si mesmo e a sua consciência, mas também perante a sua alma.
Minhas senhoras e meus senhores, caros colegas, se é verdade que para alguns de vós a questão e a responsabilidade vos pesa, é importante considerar que na nossa história houve pessoas que, quando foi necessário, assumiram responsabilidades e souberam opor uma resistência muito superior a este NÃO de consciência a algo que, efetivamente, deve ser repudiado.
Muito obrigada.
Zoe Konstantopoulou é advogada e política grega. Deputada do partido de esquerda radical Syriza, que ganhou as eleições legislativas de 25 de janeiro de 2015 na Grécia, foi eleita, a 6 de fevereiro, presidente do parlamento. Com trinta e oito anos, é a mais jovem presidente do parlamento e a segunda mulher a exercer esta função.
Tradução a partir do texto da intervenção publicado no site do CADTM.
Fonte: infoGrécia, 23/07/2015