Guilherme Boulos

Guilherme Boulos

Há um dilema na esquerda brasileira em meio a uma conjuntura negativa em todos os âmbitos. Em meio ao desmoronamento do projeto de poder lulista, que aglutinou durante décadas amplos setores da esquerda, vemos o avanço do capitalismo financeiro sobre os direitos trabalhistas, expresso também pela atual investida contra a previdência, o seguro-desemprego e a institucionalizada lei das terceirizações sem limites.

“O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É o que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir esse objetivo”, afirma Guilherme Boulos, em entrevista concedida ao Correio da Cidadania. Para ele, é preciso se defender do avanço conservador, mas também criticar e se opor às políticas de austeridade.

Nesse sentido, diversos esforços têm sido feitos. No âmbito do lulismo, foi formada a Frente Brasil Popular, com a militância governista à frente e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva como grande figura, ladeado por nomes como João Pedro Stédile, líder do MST. É inevitável associá-la à disputa presidencial de 2018. Apesar disso, vê-se um esforço por parte da militância em barrar retrocessos sociais promovidos pelo líderes do Congresso.

“A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são essas políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular”, afirmou.

Guilherme Boulos, além de ressaltar a urgência de se promover o trabalho de base, faz uma breve análise sobre sua decadência como prática da esquerda e dos movimentos sociais, apesar de sua importância para uma retomada das ruas. “O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio na política. Esse espaço foi ocupado, hoje, principalmente pelas igrejas pentecostais e neopentecostais. Elas fazem trabalho de base”, pontuou.

Confira abaixo a entrevista completa.

Correio da Cidadania: É possível defender reformas com viés popular e ao mesmo tempo demonstrar apoio, ainda que crítico, ao governo federal e sua série de políticas de austeridade?

Guilherme Boulos: A nossa postura não é de apoio ao governo. É uma postura de defesa das reformas populares e de crítica às políticas de austeridade. Isso precisa ficar claro. Por outro lado, nós não nos misturamos com aqueles que defendem a derrubada do governo, acabando por construir uma saída ainda mais à direita do que a colocada hoje no país. Nós não acreditamos que a construção com o Michel Temer e o PSDB possa ser boa para os brasileiros. Por outro lado, isso não nos faz defender o governo. É importante dizer isso. Se transformarem a discussão em “pão-pão, queijo-queijo” não conseguimos fazer uma discussão séria. O cenário é complexo e precisamos de posições que o respondam.

O que estamos construindo na Frente Povo Sem Medo (e também reflete a posição do MTST), é a necessidade de um enfrentamento às políticas de austeridade do governo. Ao mesmo tempo, fazer enfrentamento a essa ofensiva conservadora que ocorre no país e não tem só o governo como parte, mas também setores da direita histórica brasileira, encastelados no parlamento.

Uma elite típica da Casa Grande, que promove um discurso e uma prática nesse sentido. E, claro, defendemos uma saída à esquerda, com reformas populares. A saída para a crise não pode ser a proposta pela direita. Tampouco são as políticas de austeridade, que põem a conta nas costas dos trabalhadores. Precisamos de uma saída à esquerda, taxar os ricos e fazer o enfrentamento necessário para que tenhamos um projeto popular em pauta.

Correio da Cidadania: Qual sua perspectiva, através da Frente Povo Sem Medo, para chegarmos ao ponto de taxar as grandes fortunas e, enfim, termos uma resposta com corte popular à conjuntura?

Guilherme Boulos: Precisamos retomar as ruas. Programa revolucionário nunca fez revolução. Não adianta ter as melhores ideias e os melhores programas se não tiver força social. Não vai ter gente na rua para defendê-los. Isso é esquecido por uma parte da esquerda que fica em uma coisa quase masturbatória em torno de programas que não acumulam força e não geram impacto social.

A proposta da Frente Povo Sem Medo é reconstruir um ciclo de mobilização social no Brasil. Construir uma capacidade de mobilização que implica trabalho de base, ou seja, a retomada do trabalho de base dos movimentos sociais e a construção de uma agenda de amplas mobilizações. Acreditamos que isso trará condições para estabelecer de forma séria um projeto de reformas populares e de saída da crise “pela esquerda”.

Correio da Cidadania: Há outros movimentos que fazem uma leitura parecida, por exemplo, a CUFA (Central Única das Favelas) que coloca que a esquerda, seja ela partidária ou de movimentos da sociedade civil em geral, se ausentou completamente nas últimas décadas das periferias e esse espaço foi ocupado por outros setores, como por exemplo as igrejas neopentecostais. E, por falar sobre redes e ruas, como você avalia que a esquerda possa retomar esse espaço de protagonismo na disputa política pelas periferias?

Guilherme Boulos: Isso é essencial. O trabalho que a esquerda brasileira desenvolveu nos anos 80, por exemplo, com o sindicalismo enraizado, uma série de iniciativas comunitárias, como as Comunidades Eclesiais de Base que desenvolveram um método bastante utilizado na base, foi sendo paulatinamente substituído por uma estratégia parlamentar institucional. A questão não era mais formar núcleos nas comunidades. A questão era formar comitês eleitorais, eleger uma bancada parlamentar maior, prefeitos, governadores e chegar à presidência da República. Chegou-se lá. E todo o processo, ao contrário do discurso de que “faríamos isso para mudar o sistema político”, acabou absorvido pelo sistema político.

O preço de ter deixado o trabalho de base para centrar-se na disputa institucional foi altíssimo para a esquerda brasileira. E não tem espaço vazio. Como se mencionou, tal espaço foi ocupado, principalmente, pelas igrejas pentecostais e neopentecostais, porque elas fazem trabalho de base. O que a esquerda deixou de fazer, elas fazem. Às vezes o pessoal se impressiona: “poxa, que coisa incrível, eles colocam um milhão na rua, o que está acontecendo?” Eles fazem o feijão com arroz que a esquerda e os movimentos sociais já fizeram e deixaram de fazer. Temos que retomar isso. Às vezes o pessoal acredita em saídas mágicas. Não há saída mágica para a construção social.

Temos novas condições, como as redes sociais, campo de uma disputa que também precisa ser travada. Não podemos ter uma visão conservadora quanto a isso, uma visão “brucutu” sobre as redes, mas ao mesmo tempo não podemos continuar mistificando quais são as saídas. É preciso fazer trabalho de base, nosso feijão com arroz. É preciso subir o morro, sujar o pé com barro, gastar tempo, estar com as pessoas, ao lado delas.

Se a esquerda não retomar isso, a ofensiva conservadora só vai crescer no nosso país. O caminho para a retomada de um novo ciclo de mobilizações é o aprofundamento e a radicalização do trabalho de base. É nisso que nós acreditamos e vemos a Frente Povo Sem Medo como um instrumento para atingir tal objetivo.

Correio da Cidadania: Tendo em vista esse dilema, entre um projeto institucional e a proposta de retomar o trabalho de base, conceitos que naturalmente se chocam, como é possível construir uma alternativa de esquerda e, ao mesmo tempo, manter um diálogo próximo com os setores que abandonaram o trabalho de base em troca da institucionalidade?

Guilherme Boulos: Uma parte da esquerda comete o erro de achar que dialogar é contaminar, que não se pode dialogar e compor um espaço com quem se diverge, porque seria uma traição, uma contaminação, ou seja, é uma ideia muito purista. Nós temos na esquerda um purismo muito danoso. É meio que o discurso do ovo de ouro, não é? O ovo de ouro é uma coisa brilhante, bonita, mas não serve para nada. Ter um discurso puro, reto, perfeito, não dialogar com as contradições, não dialogar com quem tem base social, me desculpe, podem dizer o que quiserem, mas a CUT é a maior central sindical do Brasil, onde está a maior parte dos sindicatos do país. Achar que vamos construir espaços de unidade, de mobilização social, sem dialogar com a CUT, é uma ilusão. Eu não acredito nisso. Posso não concordar com tudo o que a CUT diz, mas nem por isso eu não posso sentar e discutir com ela.

O que define uma alternativa é o tom que ela vai ter. Se há um acordo, do ponto de vista de enfrentar a ofensiva conservadora e as políticas de austeridade do atual governo, de manter uma independência firme e de construção de saídas populares para a crise, essa é a plataforma. Se fulano ou cicrano estão ali ou não, não somos nós quem vamos definir. Unidade se faz dessa forma, não é só com quem a gente concorda. Isso não é unidade, é identidade. Quem não tem capacidade de tolerar e dialogar com quem pensa diferente não vai construir nada de relevante no país.

Correio da Cidadania: Diante de toda essa conjuntura, como fica a questão da moradia? As políticas públicas e os setores da sociedade organizados em torno de tal demanda?

Guilherme Boulos: Junto com os servidores públicos, a moradia foi o setor mais atacado pelo ajuste fiscal. O Minha Casa Minha Vida foi paralisado. Este ano não houve contratações para o programa. Só um, o empreendimento Copa do Povo, do MTST. Enfim, praticamente foram zeradas as contratações no país todo, em nome de políticas que fazem os trabalhadores pagarem pela crise.

Temos críticas ao programa Minha Casa Minha Vida. Vemos vários limites nele. Mas a alternativa não é acabar com esse programa e deixar o país sem política habitacional. O MTST tem feito vários enfrentamentos: semana passada, ocupamos sedes do Ministério da Fazendo no país todo, em Brasília, em São Paulo e em outras capitais, para exigir a retomada dos investimentos em habitação popular. A política do governo, de ajuste fiscal, é um tiro no pé. Em todos os sentidos. A questão da construção de habitações não é só deixar de atender a uma demanda social, mas tem a ver com emprego, ou seja, acaba deixando de movimentar a economia.

O ajuste, quando aumenta juros, corta investimentos e gera recessão na economia, diminui também a arrecadação e pode gerar um novo desajuste fiscal. Essa política que está sendo aplicada é inconsequente, inaceitável e precisa ser enfrentada nas ruas. O MTST tem feito isso, a Frente Povo Sem Medo o fará após sua formalização e, retomando a pergunta, eu digo que a moradia foi o direito social, talvez, mais afetado pelo ajuste fiscal. Junto, claro, com os servidores públicos, tanto que fizemos uma luta conjunta no último dia 23.

Além disso, vemos uma série de ataques aos trabalhadores através da diminuição do seguro desemprego, pensões etc. Agora estão falando em mexer na previdência, na aposentadoria, um absurdo que precisa ser enfrentado, venha de onde venha. Se fosse um governo do PSDB nós enfrentaríamos na rua. Não é porque o governo que está fazendo isso é do PT que nós não vamos para a rua enfrentar.

Raphael Sanz e Felipe Bianchi são jornalistas

Esta entrevista foi feita em parceria com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Fonte: Correio da Cidadania, sábado, 03 de outubro de 2015