“A crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto”
Darcy Ribeiro
Não foi na última segunda-feira, com o vazamento do áudio da reunião realizada entre o chefe de gabinete da Secretaria Estadual de Educação, Fernando Padula, com dirigentes regionais do ensino público, que começou a guerra aos estudantes paulistas. Também seu final não será decretado com a queda do secretário de educação Hermann Voorwald, que na tarde desta sexta-feira, 4 de dezembro, deixou o cargo com o rabo entre as pernas. Muito antes da incursões policiais clandestinas nas escolas, da repressão brutal aos estudantes que fecharam ruas e da guerra informacional feita a partir de boatos de uma depredação que nunca existiu – existem sim, inúmeras provas contrárias ao boato, basta buscar na fonte – o Estado de guerra já havia chegado às escolas sob a forma do ensino precário, da falta de acesso ao patrimônio escolar, entre outros sintomas. Em uma expressão: abandono calculado.
Um dado curioso do movimento secundarista talvez remonte à influência dos secundaristas chilenos de 2012. Se por um lado o protagonismo dos estudantes é valorizado, a ponto de expulsarem de ocupações até mesmo organizações de esquerda que por alguma razão tentaram tomar as rédeas da luta secundarista (e que provavelmente usarão as fotos das visitas em campanha), por outro lado há um enorme espaço aberto para a sociedade organizada participar da luta. O verbo é “somar” – não “dirigir”. Quem se recusa a entender isso, simplesmente não compreendeu nada do que houve nas ruas de São Paulo, e do Brasil, de 2013 para cá.
Essa espaço de abertura de participação está no princípio do movimento e foi o que tornou possível o entendimento da realidade das escolas por parte das redes de apoiadores, muitas vezes ausentes da escola há mais de dez anos. Professores de outras escolas, jornalistas, médicos, enfermeiros, socorristas, artistas, cozinheiros e toda sorte de gente que vê na luta dos secundaristas algo em que se apoiar para o futuro esteve nas centenas de escolas ocupadas ao longo das últimas semanas oferecendo oficinas, aulas públicas e rodas de conversa. Foi em um desses eventos que este Correio pôde estar mais próximo da realidade de uma das escolas ocupadas.
E.E. Maria José Ocupada
Na sexta-feira, 27 de novembro, a declaração de guerra não havia sido verbalizada nas redes, mas os estudantes já estavam em alerta. Ao chegar, por volta das 8h:30m na Escola Estadual Maria José, na rua Treze de Maio, centro de São Paulo, encontrei alunos sérios e cautelosos na porta, conversando entre si sobre as insistentes abordagens da Polícia Militar nos portões. “Estão vindo todo dia fazendo e um monte de perguntas, mas estamos preparados. Eles perguntam quantas pessoas tem aqui e nós só falamos que tem muitas, que tem bastante, mas não damos o número”, relataram.
A escola atualmente comporta três ciclos educacionais: infantil, primário e secundário. De acordo com a proposta de reorganização do Governo do Estado, os ensinos primário e secundário seriam fechados e seus alunos transferidos para outras unidades, deixando a escola apenas para o ensino infantil. “Não queremos sair daqui, gostamos muito desse lugar e queremos melhorá-lo, como já estamos fazendo”, comentou um aluno do terceiro ano durante a roda de conversa sobre mídia e ativismo.
A aluna Lilith Cristina, do primeiro ano do ensino médio, levou a reportagem do Correio da Cidadania para uma caminhada pela escola, e foi explicando em linhas gerais o que vêm acontecendo há anos por trás dos muros. Atravessamos o refeitório que fica logo na entrada e subimos uma rampa para visitar as salas de aula. “O que incomoda são essas grades, parece que estamos na Fundação Casa”, lamentou. Foi a primeira frase que lhe ocorreu. Depois mostrou as infiltrações na parede, carteiras em estado lastimável e os ventiladores quebrados – praticamente feitos sucata, sem a mínima limpeza e manutenção, com fios desencapados, poeira e tudo o que anos de descaso dão direito.
Também cheio de pó estão os corredores e com as carteiras empilhadas. “Já era da rotina da escola antes da ocupação. Isso já estava assim, nós não mexemos. Inclusive eles começaram obras em algumas salas durante o período de aulas, tínhamos de prestar atenção na aula com um barulho de britadeira vindo do outro lado do corredor”, narrou.
No andar de baixo, a quadra está em reforma, sem aula de educação física há 6 meses. Como paliativo, a jovem estudante explica que abriram um espaço ao lado da quadra, antes tomado por carteiras e entulho, para que as crianças batessem bola e jogassem boliche ao visitar a ocupação, algo que a diretoria não tem medido esforços para impedir. “A sala de recursos foi reformada pela ocupação e ninguém sabia que ela existia. Eu trouxe muitos jogos de tabuleiro de casa para o pessoal passar o tempo e, principalmente para as crianças, mas aqui tem muito mais jogos do que os que eu trouxe e eles ficavam trancados. Se eu soubesse que eles existiam, não precisaria ter trazido os meus”, contou Lilith.
Mas o acesso negado à infraestrutura escolar não para por aí: “tem sala de informática, mas não podemos usar, não tem aula de informática para o ensino médio”. Também os instrumentos musicais, três violões e instrumentos de percussão sempre estiveram fora do alcance dos alunos, que sequer têm aulas de música e os descobriram após a ocupação.
Uma queixa frequente, tanto da moça que conversou conosco quanto de conversas aleatórias com outros alunos é de que os professores não apoiam a ocupação e a diretoria faz todos os esforços para boicotá-la. Uma das atividades que Lilith Cristina explicou que estava sendo desenvolvida pelos estudantes ocupados era a criação de uma espécie de creche na ocupação, não exatamente nessas palavras, onde as crianças do ensino infantil pudessem passar o dia e participar de atividades enquanto os pais trabalham.
“Nossa ideia é de até ajudar os pais e mostrar para eles que o que nós queremos aqui na escola é do interesse deles também, que a reorganização vai ser muito pior. Mas todos os dias, meia hora antes das crianças entrarem, o diretor fica na porta falando um monte de mentira sobre a ocupação, orientando mal os pais e alunos e nos impedindo de recebê-los aqui na escola por isso. Hoje faremos uma comissão especial para receber as crianças e pais”, contou.
Uma das acusações da diretoria é de que possa haver uso de substâncias ilícitas na ocupação, prática que a reportagem do Correio da Cidadania não presenciou, pelo contrário, diversos cartazes proibindo o uso de drogas foram espalhados pela escola.
A guerra
Declarada a guerra em reunião dominical pelo chefe de gabinete da secretaria de educação, já na segunda-feira os estudantes da E.E. Fernão Dias e outras da zona oeste ampliaram a tática. Ao invés de simplesmente ocuparem suas escolas, levaram as carteiras para a esquina das Avenidas Faria Lima e Rebouças e ocuparam a rua. Em resposta, houve um verdadeiro massacre da polícia militar sobre os estudantes secundaristas.
Paralelamente, pais e diretores contrários à ocupação contaram com o apoio da polícia para invadirem – sem mandato judicial – a E.E. Maria José. Depois de muitas “cenas lamentáveis”, os estudantes expulsaram os invasores e retomaram, dentro dos preceitos legais, a ocupação. Não só a “Ocupação Mazé”, como carinhosamente chamam os estudantes, mas houve a retomada em todas as outras escolas que sofreram o mesmo tipo de ataque. O preço dessas retomadas foram mais agressões a estudantes, ameaças, intimidações até mesmo à imprensa independente e a entrada de canais de televisão atrelados aos interesses daqueles que fecham escolas (e abrem prisões), que armaram a já obsoleta montagem do “vandalismo”.
Acontece que assim como em 2013, a PM acrescentou à mistura um ingrediente sangrento que se voltou contra aqueles que a ordena e sua mídia aliada. Novamente, a narrativa alternativa às versões oficiais e burocráticas reverteram o fluxo informacional, principalmente nas redes. Essa outra narrativa, vinda dos próprios estudantes e dos veículos de comunicação que se solidarizam com eles começou a ganhar a opinião pública. Afinal de contas, apesar de realidade, essa situação tem contornos de ficção, tão absurda que é.
Na terça, quarta e quinta-feira, mais estudantes ocuparam escolas, ruas, fizeram manifestações, barraram mais tentativas paramilitares de invasão das escolas ocupadas e colocaram a grande mídia de joelhos. Novamente vimos um certo apresentador da TV Bandeirantes se embananar ao vivo e matérias progressistas nos tabloides, ainda que alguns vídeos do canal de um desses tabloides na internet tenha sido reeditado, coincidentemente, no mesmo dia em que o governador visitou sua redação. A reação foi brutal. Prisões, balas de borracha, bombas, intimidação, força tática, choque, só faltaram os cavaleiros templários da ordem católica a qual pertence o governador, bem oposta à do Papa Francisco citado por ele no pronunciamento da tarde do dia 4.
Alckmin perdeu força. Sua incapacidade de dialogar sem apontar uma arma na cabeça da outra parte fez com que sua popularidade e aprovação caíssem, segundo estatística Datafolha. Também o Ministério Público e a Defensoria Pública, em conjunto, se colocaram no caminho e pediram, na última quinta-feira, a suspensão da reorganização em todo o estado, a legitimidade da permanência dos estudantes nas escolas e a apresentação de um calendário de debate para o ano de 2016 em torno do assunto. A Justiça deu ganho de causa, deixando um prazo de 72 horas para que a Fazenda do Estado se manifestasse.
O governador Geraldo Alckmin foi ele mesmo fazer o já citado pronunciamento, com a feições claramente cansadas e a derrota estampada no rosto. Puro teatro. Acatou as determinações da Justiça e adiou a reorganização para o ano que vem. Resta saber se o calendário de debates vai ser cumprido, se os estudantes serão respeitados enquanto ocupações e, principalmente, se todos os presos, feridos e agredidos durante essa semana de guerra imposta pelo Estado a um movimento de pessoas muito jovens serão devidamente indenizados e receberão pedidos públicos de desculpas dos seus agressores, mandantes e executores, públicos e privados.
Como bem resumiu o colega jornalista Carlos Eduardo Alves: “quem não é de São Paulo talvez não entenda o significado do que aconteceu aqui hoje. Então faz assim: imagine seu estado dominado pela mesma força política há, no mínimo, 20 anos. Nunca nenhuma categoria organizada, seja sindicato, partido político ou qualquer outra força conseguiu deter projetos dos sábios tecnocratas, impostos na base do ‘eu sei tudo o que é melhor para vocês’. Aí, sem que ninguém esperasse, meninas (muitas) e meninos de 14, 15 e 16 anos enfrentam revólveres na cara, bombas, ameaças de brucutus e fizeram um governador sair transfigurado, quase correndo, de um pronunciamento em que admite a derrota do fuzil contra o estilingue. Foi isso o que aconteceu em 4 de dezembro de 2015 em São Paulo”, declarou.
Enquanto isso, os estudantes permanecem nas ocupações. Segundo o seu próprio pronunciamento, feito às 19h30, horas depois da coletiva do governador, eles, organizados, decidiram manter as ocupações e estarão atentos aos movimentos institucionais. Foram enfáticos: “o recuo do governador é para nos desmobilizar”.
Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania
Fonte: Correio da Cidadania, segunda-feira, 7 de dezembro de 2015