Em entrevista ao esquerda.net, José Manuel Boavida, diretor do programa nacional para a diabetes, salienta o papel da cidadania, destacando que em Portugal fundou-se a primeira associação de diabéticos do mundo, e aponta que a alimentação é uma “questão fundamental” e “está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais”, “que modificam muitos dos nossos comportamentos”.

Nesta entrevista ao esquerda.net, publicada no Dia Mundial da Diabetes – 14 de novembro – José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”. Em Portugal, “temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes”, refere. José Manuel Boavida fala também do papel da cidadania na prevenção e tratamento da doença e aborda a alimentação, como “uma questão fundamental que é pouco falada”.

José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”

José Manuel Boavida afirma que a “diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém”, salientando que se trata de uma “desadaptação” do ser humano “a esta sociedade que criámos”

Qual é a situação atual da diabetes em Portugal, particularmente os efeitos dos últimos anos de austeridade?

José Manuel Boavida: A diabetes em todo o mundo tem vindo a aumentar de uma forma que não era expectável por ninguém, não só no mundo dito mais desenvolvido mas também nos países em vias de desenvolvimento. Os países que hoje têm mais diabetes são os países como a China, a Índia, o Paquistão, o Egito, o Brasil, coisa que não era de maneira nenhuma expectável e a maior parte das pessoas, que não sabe, pensa ainda que são os EUA e os países que são normalmente apontados como os países da obesidade e da diabetes. Não é verdade.

A diabetes é um problema de uma desadaptação do homem a esta sociedade que criámos. Obviamente que uma situação de crise agrava esses problemas. O acesso à alimentação torna-se um acesso a uma alimentação mais barata e, normalmente, mais hipercalórica e menos saudável. Todo o stress ligado às situações de desemprego, de afastamento, de isolamento social, são situações que são também criadoras de diabetes, diabetogénicas.

E temos também uma sociedade que deixa de pensar as cidades do ponto de vista da mobilidade das pessoas, do desenvolvimento da atividade física. Afastámos o exercício, a atividade física, do trabalho, pelo próprio desenvolvimento da sociedade, e tudo isso condicionou estes três elementos: a alimentação, a atividade física e o stress são considerados hoje em dia os elementos fundamentais do desenvolvimento da diabetes.

Mas, é evidente que isto se insere numa sociedade que é hoje o resultante dos mais capazes, que foram selecionados pela espécie, que são os sobreviventes. E, portanto, estes sobreviventes são pessoas muito resistentes e que estão preparados mais para as épocas de fome do que para as épocas de abundância e esta é a contradição e o grande problema do desenvolvimento da diabetes.

A diabetes em Portugal. Neste momento os números, do ponto de vista de percentagens, são também agravados pela emigração da população jovem, pelo envelhecimento, e portanto, os números têm vindo a aumentar – aumentaram cerca de 2% nos últimos cinco anos, o que demonstra bem o impacto: temos hoje mais de um milhão de pessoas com diabetes, entre os 20 e os 80 anos, e temos cerca de 30% de pessoas em risco de virem a ter diabetes.

Em primeiro lugar, é evidente que é preciso tratar as pessoas com diabetes, mas em segundo lugar, é preciso dirigirmo-nos àqueles que estão em risco de a vir a desenvolver, porque são esses que hoje podem atuar, corrigindo alguns destes problemas. Aqui também numa perspetiva de que a correção não é individual. Ou seja, se estamos à espera só de que os comportamentos individuais modifiquem as condições nunca iremos muito longe. Poderemos conseguir grandes vitórias isoladas, mas temos de ter uma visão social, porque a diabetes é claramente uma doença social, é uma doença da sociedade moderna e da desadaptação do homem a esta sociedade moderna.

Para combater e para responder ao problema da diabetes qual é o papel da cidadania, tanto mais que nesta sexta-feira se comemora o Dia Mundial da Diabetes?

José Manuel Boavida: Portugal tem aí um exemplo grande, que fundou a primeira associação de diabéticos do mundo. E essa associação foi criada numa altura em que se descobriu um medicamento que era caríssimo, que era inacessível às pessoas e houve um conjunto de pessoas que se juntaram e formaram a Associação Protetora dos Diabéticos e foi ela que dava a insulina, mas sempre numa perspetiva de autonomia, de integração social das pessoas, de devolução, que era o termo utilizado na altura, de devolução das pessoas com diabetes à sociedade. Ou seja, as pessoas vinham, aprendiam a tratar-se e a insulina era-lhes enviada pelo correio, que é uma forma absolutamente revolucionária de encarar a doença e de encarar a situação das pessoas. Há frases dos anos 20 [do século XX] absolutamente fantásticas como, por exemplo, do professor Pulido Valente, influenciado pelo doutor Ernesto Roma, que foi o fundador desta associação, em que diz que o papel do médico é menos tratar o doente do que ensiná-lo a tratar-se ele próprio. Isto dá bem a imagem de como a diabetes encara a cidadania e a participação ativa das pessoas no seu próprio tratamento. E, já desde esse processo se desenvolveram núcleos de apoio à associação pelo país. Com a crise económica e com as guerras mundiais esses núcleos fecharam, mas nos anos 80 começaram a surgir novos núcleos associativos pelo país.

Hoje há mais de cinquenta associações de pessoas com diabetes pelo país fora que, normalmente, comemoram este dia mundial com organizações que vão desde colocar os edifícios camarários a azul, monumentos a azul, palestras, encontros, marchas, convívios, discussão sobre os seus próprios problemas e as suas dificuldades.

Este movimento associativo teve um grande impulso no tempo da Maria de Belém como ministra da Saúde, em que se reivindicou o acesso aos materiais de autocontrole. Ou seja, serem as próprias pessoas a poderem determinar os seus valores de açúcar e assim adaptarem a alimentação, o exercício físico e a medicação consoante os valores que têm. Esse processo reivindicativo correspondeu depois a uma manifestação na Assembleia da República, que foi vitoriosa e criou um fôlego que hoje se transforma no que são hoje as comemorações do Dia Mundial.

Este ano o Dia Mundial da Diabetes foi preparado por um grande encontro que decorreu no Estoril que são os fóruns da diabetes. Esses fóruns da diabetes – já vamos no oitavo ano consecutivo – reúnem associações de todo o mundo. A Marisa Matias já esteve em três destes fóruns e tem estado associada a este processo. Este ano, o embaixador da diabetes foi o Ricardo Araújo Pereira, que conseguiu, com o seu humor, transmitir também muita força, que é necessária para a situação atual, para que, além do viver com a doença, as pessoas sejam capazes de encarar com coragem, com força, com determinação, e encontrar as saídas necessárias para uma sociedade melhor e mais humana.

Por fim, gostava que falasses sobre a ligação da diabetes com a alimentação e com o modo como comemos hoje.

José Manuel Boavida: A questão da alimentação é uma questão fundamental que é muito pouco falada. Hoje, a alimentação está nas mãos de 4 ou 5 multinacionais, com forças absolutamente incríveis e que modificam muitos dos nossos comportamentos.

Há o primeiro lóbi que é o lóbi dos cereais, que transformou todo o movimento dos pequenos almoços: se nos recordarmos do que era o pequeno almoço há 20 anos e agora a panóplia que existe de produtos para o pequeno almoço, que estão cheios de sal, que estão cheios de açúcar, e que são dados às crianças como modo absolutamente saudável e rico do ponto de vista alimentar com minerais, com ferro, com isto e com aquilo – tudo publicidade enganosa. Não quer dizer que não sejam produtos bons, mas são produtos manufaturados, com imensos produtos aditivos, que não sabemos a sua influência porque nunca foram estudados.

Nos últimos 20 anos foram introduzidos na alimentação mais de 4.000 produtos, que na sua grande maioria são estudados pelo efeito sobre o cancro, mas que não são estudados pelo efeito sobre a obesidade ou sobre a diabetes ou sobre as hormonas e muitos deles terão aqui um papel bastante importante.

O segundo grande lóbi é o lóbi da carne e temos Portugal como um bom exemplo do que é a cultura intensiva da vaca, que ocupa espaços agrícolas em grande terreno e uma cultura da carne de vaca que era uma coisa que também não existia há 30 anos – a vaca era introduzida na alimentação em pequenas quantidades.

Depois existe enfim toda a panóplia dos refrigerantes. Hoje, infelizmente, não entramos em casas de pessoas, muitas vezes com mais dificuldades, onde o refrigerante não seja considerado algo que apesar de tudo lhes dá algum prazer. O problema é que esse prazer está ligado claramente à obesidade, à diabetes e portanto às doenças do coração, em geral. Poderíamos continuar por aqui e percebermos que há uma transformação da própria alimentação. Os alimentos são cada vez mais calóricos. O aumento de preço dos produtos como os refrigerantes é praticamente nulo, nos últimos dez quinze anos, enquanto o aumento do preço dos vegetais, da fruta, dos produtos mais complexos é exponencial.

Em Portugal, por exemplo, um dos alimentos que mais tem desaparecido nos últimos anos é as leguminosas, é o feijão, o grão, ervilhas e favas que foram os alimentos que sempre constituíram a base da alimentação ao longo de anos no mundo e tem vindo a reduzir-se drasticamente.

Obviamente que depois temos outro problema que tem a ver com a alimentação: o dia a dia e a falta de tempo. Hoje, por exemplo, as pessoas preferem os fritos que são muito mais rápidos do que os cozidos. Antigamente, estava a panela ao lume, todo o dia, ia preparando a comida em lume brando, ia cozendo devagar e agora queremos isso em cinco minutos, porque as pessoas não têm tempo. Ou então, comermos com ajuda do micro-ondas, nada melhor que pré-feitos e aí vem outro lóbi que é o da indústria dos alimentos pré-fabricados, que é só aquecer e comer e a que vemos a juventude recorrer.

Já não vou falar da fast-food, que é mais do que falada, mas toda a compreensão de como esta sociedade se desenvolve de uma forma anárquica, virada unicamente para o lucro, e sem consideração nenhuma nem pela espécie humana nem pela saúde das populações é claramente marcante.

É neste sentido que é fácil o caminho da culpabilização das pessoas. As pessoas são gordas porque comem demais… as pessoas são gordas porque têm uma genética de resistência à fome e da sobrevivência que lhes faz com que absorvam bem os alimentos e que se lhes dão alimentos que não são bons obviamente se tornam gordas.

É preciso enquadrar bem esta questão da alimentação. É um debate para o qual penso que todos os movimentos se devem aproximar, devem aprofundar, porque é complexo e tem forças enormes por detrás dela que é necessário enquadrar. A publicidade é um dos aspetos menores disso. Mas não é por acaso que entre as notícias dos canais televisivos, nos noticiários da noite, aparecem anúncios de chocolates para crianças, que é influência sobre os pais e sobre os avós. Esta subtileza de todos estes lóbis é extremamente pouco subtil, mas infelizmente extremamente eficaz e, portanto, temos que encontrar formas de a combater decididamente.

Entrevista realizada por Carlos Santos e Nino Alves para esquerda.net

Fonte: Esquerda.Net, 14 de novembro, 2014