por Rodolfo Vianna

   O Coletivo de Conjuntura da Fundação Lauro Campos, coordenado por Gilberto Maringoni, reuniu-se no dia 25 de abril em São Paulo e contou com a participação de mais de cem pessoas, entre convidados e público em geral. Divididas em dois períodos, as discussões centraram-se sobre a situação econômica do país, pela manhã, e sobre a crise política na parte da tarde. Os deputados federais do PSOL Chico Alencar, Glauber Braga e Ivan Valente participaram do evento, assim como dirigentes do partido, militantes e intelectuais. A Fundação Lauro Campos disponibilizará o registro na íntegra da atividade.

   Antes do início dos trabalhos, “Grândola, vila morena” foi tocada no auditório como homenagem aos 42 anos da Revolução dos Cravos. A transmissão da música, de autoria de Zeca Afonso, feita pela Rádio Renascença na madrugada do dia 25 de abril de 1974 serviu como sinal para que se iniciasse a movimentação que derrubou a ditadura portuguesa.

   “Economia ladeira a baixo”, nome dado à primeira mesa de debate, teve a contribuição dos economistas Pedro Paulo Zaluth Bastos, professor da Unicamp, e José Luís Fevereiro, dirigente do PSOL. O deputado federal Chico Alencar abriu a discussão com um breve panorama dos acontecimentos recentes no Congresso Nacional. Sobre a votação da admissibilidade do processo de impeachment, ocorrida no dia 17 de abril, o parlamentar disse: “o que que na verdade a gente viu ali? A expressão verbal condensada, predominante de maneira avassaladora, da degradação política do nosso sistema político de maneira geral”, e que foi exposto de forma clara o “intestino grosso da pequena política”. “A ‘pequena política’ no Brasil tornou-se a ‘grande’, e só não se tornou a única por que existem os heróis da resistência”, afirmou Chico.

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   A intervenção do economista Pedro Paulo apresentou o diagnóstico que a direita faz da realidade atual da economia, para se ter mais clareza de qual projeto ela busca implementar. “A ideia básica deles é a seguinte: o pacto social da redemocratização, cristalizado na Constituinte de 1988, implica uma forte ampliação do gasto social, do gasto corrente”, e esta visão é o que sustenta o projeto que agora eles apresentam. Após a explanação das razões que levaram ao crescimento da economia nacional a partir de 2003, afirmou que “o entendimento neoliberal é completamente errado a respeito do motivo do crescimento da economia brasileira na década anterior”, e elencou quatro limitadores estruturais do modelo do crescimento econômico que se impuseram no primeiro mandato da presidenta Dilma.

   O primeiro, “não houve nenhuma tentativa de mudar a ordem tributária, de forma a deixá-la mais progressiva, e essa é uma limitação essencial para se entender o motivo pelo qual o resultado fiscal piorou tanto em 2014, antes mesmo da virada para a austeridade”. O segundo problema foi o de não ter se evitado o custo fiscal e apreciação cambial determinados pela entrega do Banco Central para os rentistas, e isso “tem um enorme impacto fiscal”. De 1997 até 2013, o Brasil teve superávits fiscais primários superiores a 2% do PIB, e a dívida pública, principalmente a líquida, caiu muito pouco “basicamente pela política de juros”.

   O terceiro ponto refere-se à limitação da expansão da infraestrutura social e de bens públicos, devido ao alto custo fiscal da política monetária, que faz com que mesmo com o aumento da arrecadação não sobre recursos para sua ampliação; e, por fim, o fator de que o crescimento do mercado interno não assegurou a reintegração das cadeias produtivas perdidas na década de 90, o que permitiria a ampliação do investimento produtivo na indústria.

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   José Luís Fevereiro iniciou sua exposição apontando as cinco grandes reformas que eram necessárias com a eleição de Lula em 2002. “Falávamos da necessidade de acelerar a reforma agrária, de forma a democratizar a propriedade do campo; fazer uma reforma tributária, que fizesse com que a renda e o patrimônio pagassem a maior parte dos impostos, e não o consumo e a produção; pensávamos num enfrentamento ao sistema financeiro, para que nós deixássemos de ser o país recordista em taxas de juros no mundo; pensávamos numa reforma política e numa regulamentação dos meios de comunicação. Uma por uma, o governo Lula não fez nenhuma dessas reformas, rigorosamente nenhuma delas”.

   Sobre a questão da dívida pública, o economista afirmou que “dívida pública é algo necessário à construção de uma economia, porque ela ajuda o governo a regular a liquidez e a criar os estímulos ao crescimento ou à redução do crescimento para segurar a inflação”, e é um “mecanismo para fazer com o que se possa realizar investimentos em infraestrutura e diluir o custo disto no tempo”. É para isso que a dívida pública existe em quase todos os país do mundo, “mas no Brasil não é assim”, contestou.

   O problema da dívida não é a sua existência e nem é o seu tamanho (a dívida líquida brasileira não chega a 40% do PIB, sendo relativamente pequena, já que a dos EUA chega a quase 100% do PIB, a grega a 180% e a japonesa a 230% do PIB), mas sim o seu custo. E a dívida brasileira é extremamente cara. Desde 1997 o Brasil realiza superávits contínuos, com exceção de 2014 e 2015, e mesmo assim “nós continuamos tendo uma dívida pública que, grosso modo, se mantém nos mesmos patamares em que ela estava há 10, 15 anos atrás”, e continuou “quando se tem taxa de juros da ordem da existente no Brasil, essa dívida não serve ao desenvolvimento, não serve ao financiamento de longo prazo, para a construção de infraestrutura, ela serve apenas para criar uma transferência regressiva de renda de baixo para cima”.

   Sobre o projeto apresentado por Michel Temer, o “Ponte para o Futuro”, José Luís Fevereiro acredita que, se ele assumir a presidência, não vai implementá-lo de forma imediata do jeito que está anunciado, “eles vão fazer todas as sinalizações de longo prazo, vão mexer na regulamentação do pré-sal, vão mexer na variação de correção do salário mínimo – o que não tem nenhum impacto nos próximos dois anos, porque não há variação positiva do PIB e, portanto, não haverá aumento real do mínimo -, vão fazer todas as sinalizações ao mercado para tentar criar o tal ‘milagre’, que é convencer o empresário a investir num mercado que não tem demanda”, entretanto não vão fazer tudo o que se comprometeram agora, como a desvinculação do reajuste do piso da previdência com o salário mínimo ou mesmo a extinção do Bolsa Família. “Precisamos racionar que podemos enfrentar um governo Temer que vai agir com pragmatismo”, e a batalha política pela legitimação do governo Temer está na rua: “de um lado nós, os movimentos sociais, e do outro lado Michel Temer e os grupos empresariais com os quais ele está articulado que vão ter que, por um lado, ponderar as suas necessidades estratégicas que motivaram o golpe e, por outro lado, construir alguma legitimidade social para esse governo”, concluiu.

   Depois das falas dos convidados para a primeira mesa, a atividade do Coletivo de Conjuntura seguiu com a abertura da palavra aos presentes e a discussão sobre o tema.

“Política, até onde irá a crise?”

   A segunda mesa, cujo enfoque foi a crise política, foi aberta pelo deputado federal pelo Rio de Janeiro Glauber Braga, cuja declaração de voto contrário à abertura de processo de impeachment teve grande repercussão e na qual chama de “gângster” Eduardo Cunha. Sobre ele, o parlamentar disse que é necessário entender que o atual presidente da Câmara dá sustentação e é sustentado por uma base de deputados que constantemente cobram sua fatura. “Se empoderou aqueles que representam a direita mais extremada dentro do parlamento”, continuou, e disse que “quem fazia e quem dava os gritos de guerra em nome do impeachment, não deixando essa bandeira morrer, é exatamente esse campo, e é esse campo que se fortaleceu a partir da agenda formulada por Cunha”. Num possível governo Temer, questionou Braga, “esse campo vai ser enquadrado ou o governo vai ter que continuar o processo de conciliação também com esses segmentos?”

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   Relatando que somente em uma manhã chegou a receber mais de 60 mensagens em seu telefone celular com insultos e ameaças, Glauber Braga atestou que esses segmentos e suas lideranças na Câmara necessitam da violência que seus discursos promovem: “essas lideranças são também violentas por sobrevivência, porque elas são vazias do ponto de vista dos argumentos daquilo que eles defendem”. Sobre o cenário que se aproxima, o deputado afirmou que, dentro do campo institucional, é necessária a luta constante pela deslegitimação do possível governo Temer, “não importa se as reformas dele serão realizadas a prazo ou à vista”. Essa luta deve ser feita no campo institucional, mas também nas ruas, porque serão as ruas que darão a sustentação a essa batalha dentro do parlamento.

   O jornalista Cid Benjamin foi o que deu sequência às falas, afirmando que a estratégia do PSOL deve ter por centralidade a defesa da democracia, e que “não podemos ter uma relação oportunista, utilitarista com a democracia, o que não nos impede de criticarmos os limites da democracia no capitalismo, em particular em um país capitalista tão desigual quanto o nosso”. Sobre o possível governo Temer, a avaliação feita foi a de que “a nossa oposição ao governo Michel Temer deverá ser diferente da oposição que fazemos ao governo Dilma, porque o governo Dilma é um péssimo governo, e um governo de direita, mas é um governo cuja legitimidade nós não questionamos. É diferente de um governo de Michel Temer, que é um governo ilegítimo e que não devemos reconhecer, e isso dá um outro tipo de relação política”.

   Um governo Michel Temer terá muitas dificuldades, ainda na avaliação de Cid Benjamim, já que terá questionamentos sobre sua legitimidade e enfrentará uma situação econômica dificíl. Há ainda um outro elemento complicador que é a Operação Lava Jato: “parar a Lava Jato hoje não é fácil, e figuras de proa desse novo governo estão implicados nela”. Diante desse quadro, a política assumida pelo PSOL, em seu entendimento, deve ser a de “questionar de cabo a rabo a legitimidade do governo de Michel Temer” uma vez que o processo de impeachment já deve ser considerado como um jogo jogado, não havendo a possibilidade do não afastamento da presidenta Dilma. Nesse quadro, a saída deve ser a bandeira das novas eleições presidenciais, por dois motivos: “primeiro, porque isso parece ser algo que a população quer e, em segundo lugar, tem tudo a ver com você não reconhecer o governo como legítimo”, chamando o povo a se manifestar “sobre o que deve ser posto no lugar dele”.

   O professor de Ciência Política da Unicamp, Armando Boito Jr., iniciou dizendo que, por não ser membro do PSOL, sua fala não se ateria à atuação do partido nesse momento atual e que tocaria num ponto central: “o caráter profundo e prolongado da crise que estamos vivendo”. Em 2013 houve as grandes manifestações de rua, o ano de 2014 foi tomado pela polarização fruto da disputa eleitoral e 2015 foi, desde o início, marcado pela discussão do impeachment, o que seriam sucessivas e diferentes fases da crise que se apresenta, e “nós temos que entender a sua natureza, entender a sua dinâmica”.

   “Eu entendo que a crise é tão profunda e prolongada porque se trata, sim senhor, de luta de classes. E não adianta a gente ficar estudando teoria das classes sociais, ou a gente, no partido, ficar o tempo todo falando da luta da classe trabalhadora, e quando se defronta com o aguçamento da luta de classes, tropeça, não reconhece e vai em frente”. Mas por que se aguçou assim a luta de classes?, pergunta Boito, para responder que, em sua visão, esse acirramento foi derivado do fato de que “o governo do PT não é, de jeito nenhum, igual ao governo do PSDB”. E não é por que? Porque os interesses de classe que o PT representou são distintos, o que não significa que o governo do PT seja um governo marcado pelos interesses da classes trabalhadoras: “pelas medidas que tomou e pelas medidas que não tomou, não dá para falar que é um governo da classe trabalhadora”.

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   Seguindo sua explanação, o professor da Unicamp afirmou se tratar de uma forma peculiar do acirramento da luta de classes porque o PT representou uma fração da burguesia que é a “grande burguesia interna”. “Essa fração controla a construção pesada, os fornecedores da Petrobrás, a construção naval, grande parte do agronegócio, parte da industria de transformação. Essa parte de burguesia apoiou de forma ativa o governo do PT”. Foi uma frente política policlassista que deu sustentamento ao governo do PT, “e o governo está em crise hoje porque essa frente está em crise”. O outro campo é o capital financeiro internacional e a fração da burguesia a ele integrada. “Sem entender essa cisão no seio da burguesia, não dá para entender o aprofundamento e o prolongamento da crise atual”, concluiu Armando Boito Jr.

   O último convidado da mesa da tarde foi Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e militante do movimento negro, que ressaltou que o debate sobre a natureza do Estado é fundamental para se analisar a conjuntura, e a natureza do Estado brasileiro tem três aspectos: “o primeiro, é um Estado voltado para a manutenção da concentração de renda e do patrimônio; segundo, é um Estado voltado a ter uma concepção restrita de cidadania; e, terceiro, é um Estado que se realiza a partir da violência como prática política central, a violência não é episódica, mas sim prática política central”. Diferentes governos tentam trabalhar com essa natureza do governo brasileiro, afirmou o professor. O governo do PT dos último anos, em sua visão, não realizou nenhuma reforma estrutural que pudesse transformar esses aspectos, ainda que de forma pontual, apesar de certas políticas de inserção social realizadas por meio do acesso ao consumo de parcelas da população antes excluídas. “Ao mesmo tempo que você percebeu uma certa inserção social a partir de programas de transferência de renda e de políticas públicas, uma melhoria relativa nas condições sociais, foi feita num período que se recrudesceu, por exemplo, o que o movimento negro chama de ‘genocídio da juventude negra’, um aumento da violência e do extermínio de jovens negros nas periferias”.

   Como forma de enfrentamento, Dennis de Oliveira acredita ser central o desenvolvimento de estratégias para potencializar essas novas formas de organização que surgem nas periferias, “construídas a partir da luta contra o racismo e contra o machismo”, e que existem dois atores políticos importantes nessa conjuntura que são a juventude negra e as mulheres negras, cujas lutas apontam que a questão racial é “a fronteira que define quem tem ou não tem patrimônio, quem é o autor e quem é a vítima da violência e quem é cidadão e quem não é cidadão”, e que é fundamental se construir uma narrativa inclusiva e política que incorpore esses segmentos e suas inovadoras formas de organização no debate político, concluiu o professor.

   A partir das falas dos convidados, outra sessão de debate foi aberta com a participação dos presentes e a reunião do Coletivo de Conjuntura se encerrou por volta das 18h. O registro em vídeo da atividade será disponibilizado na página da Fundação Lauro Campos.