por Paulo Kliass*

 

Ao contrário do que o financismo nos faz crer, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União.

A entrada em 2017 também pode ser encarada pela ótica de uma busca desesperada por afirmação de alguma rota de coerência e credibilidade do governo Temer. Afinal, o passar do tempo veio desconstruindo, pouco a pouco, toda aquela falsa expectativa criada em torno das vantagens do “golpeachment”. O canto de sereia dos “putschistas” assegurava que, uma vez consumada a retirada de Dilma do Palácio do Planalto, tudo seria resolvido e o Brasil entraria em um verdadeiro céu de brigadeiro.

A realidade, porém, insistiu em desmentir os vendedores de tais falsas ilusões. Os equívocos do diagnóstico a respeito da situação econômica e social não foram abandonados em relação à leitura equipe anterior, quando o chefe da turma da economia era Joaquim Levy. Muito pelo contrário! A entrada em campo da dupla Meirelles e Goldfajn recoloca o financismo no centro de decisões, ainda com mais poder de fogo. Assim, a manutenção da estratégia do austericídio se vê reforçada, com elevação sensível dos níveis das maldades a serem praticadas contra a maioria da população brasileira.

Já virou jargão a afirmação de que governar é fazer escolhas e definir prioridades. Pois a imagem cabe como uma luva para a compreensão dos rumos adotados por Temer, desde que ele encabeçou o movimento pela deposição ilegítima da presidenta eleita. Além de optar pela via da inconstitucionalidade do golpe travestido de ares institucionais, Temer escolheu o campo do conservadorismo ortodoxo no domínio da economia. É bem verdade que tal preferência não revelou nada de muito surpreendente, mas ele resolveu aprofundar a aliança com o núcleo duro do sistema financeiro e incorporou para si, de forma definitiva, a narrativa da inevitabilidade do ajuste recessivo.

Austericídio: cortes no orçamento e juros nas alturas.

A leitura da turma do neoliberalismo tupiniquim a respeito da dinâmica econômica permanecia monocórdica. A recomendação para superar as dificuldades se resumia, como ainda se reduz, ao binômio do corte das despesas orçamentárias e da manutenção de uma política monetária arrochada. Às favas com as críticas que apontavam para os graves problemas sociais derivados de tal estratégia, além do desprezo pelos economistas que alertávamos para a própria ineficiência de tais medidas para resolver o que se pretendia. A trágica combinação de política fiscal restritiva com taxas de juros estratosféricas provocaria uma mistura explosiva para o conjunto da sociedade.

Alçado ilegitimamente à condição de chefe de governo, Temer fez as suas escolhas. A radicalização da trilha austericida veio acompanhada de contingenciamentos mais duros de verbas públicas, de taxas de juros reais e nominais inimagináveis, de desmonte de estruturas essenciais da administração pública, entre tantas outras manifestações dos representantes da “nova equipe técnica e competente” que chegava à Esplanada dos Ministérios. Enfim, nem tão eficiente nem tão nova assim, uma vez que os oportunistas de todos os matizes rapidamente se converteram ao novo credo e se acomodaram aos comandos da nova direção.

O vice-presidente eleito em 2014 estabeleceu suas prioridades. E assim foram considerados essenciais seus objetivos de: i) promover o congelamento das rubricas orçamentárias pelo horizonte de 20 anos da vida nacional; e ii) empurrar goela abaixo da sociedade uma reforma previdenciária redutora de direitos de trabalhadores na ativa e de aposentados. Levando-se em consideração a insanidade da avaliação subjacente a tal aventura criminosa, nada mais coerente com um diagnóstico que tem seus olhos focados única e exclusivamente na necessidade de promover superávit primário a qualquer custo.

Ocorre que o discurso é mentiroso e o argumento é falacioso.

Não é verdade que a estrutura da previdência social seja estruturalmente desequilibrada e que sua manutenção levará à quebradeira generalizada do Estado brasileiro. A situação das contas do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) passa por um momento de maior dificuldade em função de problemas das receitas do INSS e não por um descontrole insuperável. Os últimos governos promoveram um festival de desonerações das receitas previdenciárias a serem recolhidas pelas empresas. Por outro lado, a redução do ritmo de atividade econômica e a recessão promoveram também uma drástica redução das receitas do RGPS. O aumento do desemprego tem provocado a retirada de milhões de trabalhadores do mercado de trabalho, com evidentes impactos também sobre a previdência.

Previdência não é estruturalmente desequilibrada.

Frente a esse quadro é compreensível que haja um descompasso entre entradas e saídas de recursos do sistema. As despesas se mantêm, uma vez que as pessoas continuam aposentadas e outras passam a se aposentar. As receitas diminuem por conta da estagnação provocada pelo austericídio. E daí os jornalões escancaram as manchetes do suposto “rombo enorme” da previdência. Trata-se do mais puro e conhecido alarmismo irresponsável. Desde 2015 as contas apresentam problemas, mas nada comparável a um descompasso estrutural. Se a economia voltar a crescer, as receitas devem retornar a patamares compatíveis às despesas.

E tudo isso sem mencionar os problemas associados ao contingente da previdência rural e ao abandono deliberado do conceito de seguridade social, tal como definido na própria Constituição. A parte mais relevante do chamado “déficit previdenciário” tem origem nos benefícios concedidos aos trabalhadores do campo, que só foram incorporados ao sistema em 1988 e não apresentam histórico de contribuição. Ao contrário do que afirmam os especialistas em planilha contábil, a decisão dos constituintes foi o reconhecimento de uma profunda dívida da sociedade brasileira para com que esse setor, que até então sempre fora marginalizado e impedido de participar do sistema previdenciário. Já o tripé “saúde-previdência-assistência” que a Constituição define como seguridade social tem suas fontes de receita asseguradas e apresenta um orçamento formalmente equilibrado.

Não é verdade que a única maneira de evitar o descontrole da inflação seja pela manutenção da SELIC em níveis tão elevados que fazem do Brasil o campeão mundial da taxa de juros há anos, sem interrupção. Exatamente pelo fato de a economia não ser uma ciência exata, existem várias interpretações para o mesmo fenômeno e mais de uma recomendação de política econômica. Tanto isso é verdade que até um dos principais economistas do campo da ortodoxia, André Lara Rezende, acaba de tornar pública uma espécie de “mea culpa” a esse respeito. De acordo com ele, a política que mantém a taxa de juros alta não apenas é ineficaz para reduzir preços, como em alguns casos pode até provocar inflação. Ainda que meio capenga, em sua auto crítica pública, o banqueiro afirma que esse tem sido o caso brasileiro (nem tão) recente. Em suas palavras: “Ou seja, o juro alto, não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo mantém a inflação alta.” Em poucas palavras, ele reconhece o equívoco cometido ao longo dos últimos vinte anos. Resta saber quem vai pagar a conta de tanta irresponsabilidade cometida contra a grande maioria da sociedade.

Por que não uma Reforma da Política Monetária?

Ora, se o governo estabeleceu mesmo como objetivo o controle de gastos públicos, sua opção em alcançá-lo pela previdência social revela uma prioridade bastante questionável. Senão, vejamos. Os números oferecidos pelas próprias instituições oficiais encarregadas pela política econômica são cristalinos.

Ao contrário do que nos faz crer o discurso do financismo, não é a rubrica previdenciária aquela se apresenta como a maior deficitária na contabilidade da União. O item do Orçamento federal que oferece o maior rombo é a conta de pagamento de juros. Sim, de acordo com informações do próprio BC, ao longo de 2016 as despesas com esse quesito foram de R$ 407 bilhões, algo que representa em torno de 7% do PIB. Houve momentos, ao longo do ano passado, em que o total acumulado de 12 meses dessa conta chegou a atingir igualmente vergonhosos R$ 540 bilhões. Ainda que sejam gastos da órbita federal, o governo faz cara de paisagem e ignora o assunto quando alguém ousa colocar o tema na mesa. Como não existe nenhuma receita de tributo correspondente a tal atividade, o impacto das despesas é 100% comprometedor do equilíbrio fiscal. No entanto, como outra “prioridade do governo” é a manutenção do superávit primário, não há nenhuma medida para contingenciar ou reduzir os gastos com a política monetária. Afinal, como o povo da finança enche a boca para dizer, os contratos do mercado são sagrados e imexíveis.

Assim, como a intenção é encontrar contas passíveis de redução na estrutura orçamentária, os especialistas dos cortes não hesitam em apontar o dedo para a previdência social. Afinal, a conta é mesmo expressiva: foram R$ 516 bi em 2016. No entanto, o sistema prevê receitas específicas para sua manutenção. Assim, ainda que fiquemos submissos aos cálculos polêmicos e questionáveis do Ministério da Fazenda, o déficit apresentado pelo sistema no ano passado teria sido de R$ 108 bi. A disparidade entre ambas as contas é evidente! Mas o governo esqueceu juros e optou pela previdência.

Assim como a chamada “PEC do Fim do Mundo” silenciou sobre congelar os gastos financeiros ao longo dos próximos 20 anos, aqui também o financismo passa incólume – graças ao compadrio generoso dos responsáveis pela equipe econômica. Pouco importa o caráter redistribuidor de renda dos benefícios do INSS. Pouco importa que mais de 40% desse volume de aposentadorias e pensões retorne aos cofres públicos sob a forma de tributos e impostos. Pouco importa que sejam mais de 30 milhões de indivíduos beneficiados por esse tipo de remuneração. A prioridade é a Reforma da Previdência, com o intuito de retirar direitos para reduzir as despesas previdenciárias. E ponto final.

Juros: R$ 4 trilhões em 2 décadas.

Por outro lado, a exemplo do que vem sendo praticado há décadas, a prioridade é não mexer com o superávit primário. Assim, não interessa promover nenhuma “Reforma da Política Monetária” – esta sim poderia oferecer algum alívio significativo nos gastos federais. Nesse caso, os dados da Secretaria do Tesouro Nacional são realmente impressionantes. Ao longo de 2 décadas entre 1997 e 2016, por exemplo, o Estado brasileiro registrou um déficit acumulado de R$ 4,1 trilhões em sua conta de juros. Isso significa que foi esse o valor transferido do orçamento público para o sistema financeiro, a título de pagamento dos juros da dívida pública. Todos sabemos que são recursos dirigidos a uma pequena parcela da população e sobre os quais incide uma porcentagem muito reduzida de impostos, em razão da conhecida regressividade de nossa estrutura tributária.

Previdência social ou juros? Temer fez sua escolha e definiu sua prioridade.

Cabe à sociedade organizada demonstrar sua discordância e pressionar o Congresso Nacional para evitar a aprovação de tal desastre anunciado.

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

 

Publicado originalmente na Carta Maior. 08/08/2017. http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FPrevidencia-Social-ou-Juros-%2F7%2F37670