por Marianna Holanda e Gabriel Manzano, O Estado de S.Paulo
Em um mês foram lançados livros de autores e editoras diferentes, mas com títulos que dialogam entre si e criam um enredo: Cinco Mil Dias – O Brasil na Era do Lulismo, A Crise das Esquerdas e Caminhos da Esquerda – Elementos para uma Reconstrução. Os treze anos de governo petista, interrompidos com o traumático impeachment de Dilma Rousseff no ano passado, deixaram o campo ideológico da esquerda desorientado. A um ano das eleições gerais, o fio condutor das obras de Aldo Fornazieri e Carlos Muanis; Gilberto Maringoni e Juliano Medeiros; e Ruy Fausto é a autocrítica, ou a falta dela, como elemento de reconstrução do campo ideológico.
Da editora Boitempo, Cinco Mil Dias teve a difícil tarefa de analisar, em 400 páginas, a era lulista, com ensaios de mais de 50 especialistas que falam desde a campanha eleitoral que alçou o PT à presidência, em 2002, a políticas públicas de gênero da gestão Dilma.
Nas palavras de Maringoni, professor da Universidade Federal do ABC e um dos autores do livro: “O PT, pela própria voz da presidente Gleisi (Hoffmann, senadora e presidente do partido), afirmou não querer fazer autocrítica, para não ‘fortalecer o discurso dos adversários’. Não se trata de fazer uma autocrítica no sentido de flagelo religioso, mas de se avaliar escolhas feitas no governo. A ideia do livro é examinar a experiência lulista em diversas frentes – os rumos da política, da economia, dos direitos sociais etc. e os avanços e recuos em cada área e onde houve acertos e erros.”
Uma das maiores críticas da direita aos petistas, de que foram supostamente responsáveis por polarizar a esquerda e a direita, não ecoa nas páginas do livro da Boitempo. Nas palavras do organizador, Juliano Medeiros: “O sucesso do lulismo estaria, assim, em arbitrar pelo alto os conflitos sociais, despolarizando a dicotomia esquerda x direita e transformando-os em conflitos intraestatais, ocultando-os como tal.” Ao internalizar o “conflito social”, com um latifundiário à frente do Ministério da Agricultura e um médico petista no comandando a Saúde, o PT atestou o fracasso do tal pacto.
Com o mesmo objetivo de análise e reconstrução, autores se repetem nas diferentes obras. O líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos, aparece tanto em Cinco Mil Dias, quanto em A Crise das Esquerdas. Neste segundo, ele também critica o “pacto de conciliação petista” – o que a seu ver deveria ter sido trocado por um “novo pacto socialmente sustentado”.
Com um olhar ideologicamente rigoroso, Boulos assinala que o Minha Casa Minha Vida deu dinheiro para construtoras e o ProUni deu dinheiro para as universidades privadas. “Eu diria que a esquerda está condenada à revolução”, adverte. Ao que Fornazieri, que o entrevista no livro, provoca: “Tendo em vista a inviabilidade da revolução, no horizonte em que vemos a atual situação da América Latina, a esquerda está condenada é ao fracasso. A única estratégia possível é a redução dos males do capitalismo.” Categórico, Boulos insiste: “Vai haver convulsão social. Os próximos anos serão de crise social. Vai se colher o que esta política de austeridade está gerando.”
Diferentemente de Cinco Mil Dias, A Crise das Esquerdas, em suas 266 páginas, vai além de uma “autocrítica interna” voltada para a militância de esquerda, mas apresenta um olhar amplo, histórico, que expõe desde as primeiras distorções provocadas pelo stalinismo, nos anos 1940, da antiga União Soviética, até a constatação, mais recente, de que os governos de esquerda “não conseguiram criar uma saída sistêmica em relação ao capitalismo”, como afirma Fornazieri.
Tarso Genro, um dos fundadores do PT e um dos dez autores do livro de Fornazieri, defende que a crise não começou com o “desmantelamento da experiência soviética, mas tem raízes bem mais profundas”. Genro deixa o alerta: “Nunca a força da política e o apreço da utopia foram tão importantes.”
Cientista político e superintendente da Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso, Sérgio Fausto define como um “desastre político” o “deslocamento do PSDB à direita e o colapso do PT”. Resta, conclui, “esperar a atual crise decantar para se tirar conclusões”.
Alguns elementos de solução, Ruy Fausto, que assina um artigo em A Crise das Esquerdas, apresenta em seu próprio livro, lançado na semana seguinte ao primeiro: Caminhos da Esquerda: Elementos para uma Reconstrução. Todas as 216 páginas do livro são críticas à esquerda ou ao que o autor considera que se deve mudar. De formação clássica da esquerda, o professor emérito de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) avalia que, para prosperar nesta crise, a esquerda deve se desvencilhar do que ele chama de “patologias”. Dentre elas, o flerte com regimes totalitários, como a insistente exaltação da União Soviética, por exemplo. As outras duas patologias são: populismo e adesismo.
O balanço dos acertos e erros da experiência petista no poder é o primeiro para contornar a crise e reorganizar a esquerda, na avaliação de Juliano Medeiros. O último ensaio de Cinco Mil Dias, assinado pelo historiador e presidente da Fundação Lauro Campos, do PSOL, trata dos “desafios para uma esquerda pós-lulista”.
Na avaliação de Medeiros, “pós-lulismo” é mais do que o fato de Lula ser ou não candidato em 2018 – como vem insistindo o ex-presidente, apesar de Moro tê-lo sentenciado à inelegibilidade. “Mesmo sendo Lula o candidato, é o começo do pós-lulismo, porque seria a última vez. Ou seja, já estamos vivendo uma transição em que o lulismo deixará, gradativamente, de ser a corrente hegemônica na esquerda brasileira. Mas ainda não sabemos o que virá no seu lugar”, pontua. E, para isso, é necessária uma profunda renovação programática – a segunda tarefa para a esquerda pensar o futuro. O programa petista de conciliação e de abandono na tradição hegemônica na esquerda até então, segundo Medeiros, deixou a esquerda brasileira, no século 21, com um enorme “déficit programático”.
Por fim, o terceiro desafio que o historiador propõe é a necessidade de uma nova “promessa de que é possível um caminho diferente no futuro”. Promessa, segundo ele, para uma “geração inteira de militantes, desiludida com as inaceitáveis concessões feitas pelo partido”. A sugestão de Medeiros, para se pensar 2018 e para além das eleições, é a construção de uma “esquerda horizontal, pluralista, radicalmente democrática e profundamente comprometida com os interesses dos explorados e oprimidos”.
Matéria originalmente publicada no Caderno Aliás, do Estado de S.Paulo (05/08/2017)