Jadir Brito

Jadir Brito

A produção capitalista desconsiderou as desigualdades socioambientais, bem como reduziu conflitos ambientais às limitações tecnológicas. Contemporaneamente está em curso um neoliberalismo ambiental que passa a considerar cada vez mais os conflitos e a degradação do meio ambiente, por esses interferirem nos resultados da produção econômica.

Os padrões de racionalidade do capitalismo se expressam na razão instrumental, interpretando os conflitos ambientais e degradação do meio ambiente reduzidos ao desperdício de energia, à poluição dos resíduos industriais, sem a consideração das injustiças decorrentes do etnocentrismo, do racismo e da exploração econômica do capitalismo. O modo de produção capitalista desconsiderou as desigualdades socioambientais, assim como reduziu conflitos ambientais às limitações tecnológicas. Contemporaneamente está em curso um neoliberalismo ambiental que passa a considerar cada vez mais os conflitos e a degradação do meio ambiente, por esses interferirem nos resultados da produção econômica. Contudo, o capital tem utilizado, como estratégias, frente à crise ambiental, mecanismos da mercantilização do meio ambiente como, por exemplo: o mercado de créditos de carbono; as tecnologias “limpas”; os “mercados do ar”; as biotecnologias aplicadas às sementes transgênicas ; as monoculturas do eucalipto e da soja; a legitimação monista do poder político; a recusa da discussão democrática dos projetos ambientais; as propostas de flexibilização das políticas e legislações socioambientais; as propostas de celeridade do licenciamento ambiental e de dispensa de estudo de impactos ambientais.

Nas áreas urbanas, o racionalismo instrumental formula respostas à degradação ambiental, através de ações políticas amparadas nos conceitos indeterminados de cidades sustentáveis e de sociedade de risco. Todos esses conceitos e práticas são representantes de uma racionalidade objetiva da crise ambiental que desconsidera elementos subjetivos da vida social. Assim, a degradação é reduzida a um colapso objetivo, como conseqüência da entropia do meio ambiente que leva ao esgotamento do modelo de produção capitalista e à abstração das injustiças sociais decorrentes desses modelos.

Os conflitos socioambientais nas áreas urbanas e rurais podem ser analisados sob duas dimensões: uma objetiva, referente aos litígios entre projetos de desenvolvimento e sustentabilidade e outra subjetiva, referente à representação social e identidades culturais distintas. Os conflitos estão também situados no campo simbólico da dominação entre o modelo sociocultural das elites européias e a resistência expressa na lutas políticas insurgentes das comunidades pobres, indígenas e africanas na América Latina que pautam mudanças dos limites e das fronteiras-territoriais ou institucionais dos direitos de propriedade privada, a propugnar o uso comunitário da terra.

No Brasil, o direito e as políticas públicas urbanas, ambientais e fundiárias consideram o conceito do desenvolvimento sustentável de norma indeterminada e abstrata. O desenvolvimento sustentável é um dos princípios constitucionais do direito ambiental prescrito no Princípio nº 4 da Declaração do Rio de 1992 e no Artigo 225 da Constituição Federal. O conceito de sustentabilidade ambiental ou desenvolvimento sustentável é uma semântica aberta e indeterminada que permite uma interpretação polissêmica nas formulações acadêmicas e nas decisões judiciais. Devido a essa indeterminação semântica, a livre interpretação de juízes, promotores, membros do poder executivo e legisladores é suscetível aos argumentos do neoliberalismo ambiental, justificada nas “verdades” e “soluções” da ecoeficiência e na ditadura do pareceres técnicos em detrimento de argumentos redistributivos e de reconhecimento da justiça ambiental. Desse modo, essas interpretações constituem uma representação social do desenvolvimento e da sustentabilidade e práticas que não só ampliam as possibilidades de conflitos ambientais, como fomentam o recrudescimento da violência e das desigualdades socioambientais sobre comunidades urbanas e rurais submetidas às injustiças ambientais. Como expõe Roberto José Moreira, o conceito de desenvolvimento sustentável possui dimensões fundamentais para que o discurso do desenvolvimento do capitalismo não continue a promover danos ao meio ambiente, inibindo as condições das necessidades básicas da segurança social e a participação da sociedade nos destinos de suas vidas (MOREIRA, 1999).

O enfrentamento dos conflitos socioambientais urbanos, por uma perspectiva socialista e popular de esquerda, demanda a defesa de mecanismos compensatórios. As compensações urbano-ambientais e fundiárias são, por princípio, mecanismos socioeconômicos para a reapropriação das mais-valias urbanas, fundiárias e ambientais decorrentes de investimentos públicos ou mesmo de valorização artificial das terras por mecanismos legais em favor do capital nas cidades. Deve ser pauta de um governo de esquerda popular a implementação de mecanismos compensatórios de recuperação das mais-valias, a exemplo dos já formalmente presentes no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), ou mesmo na Lei 9985/00. Desse modo, a regulamentação do IPTU progressivo, da contribuição de melhoria, a promoção de incentivos e benefícios fiscais e financeiros, em favor de áreas mais pobres, a concessão de uso especial para fins de moradia, a instituição de zonas especiais de interesse socioambiental, desapropriações e amplo programa de moradia digna são compromissos inarredáveis para um governo orientado por princípios socialistas populares.

A defesa das compensações urbano-ambientais por um governo popular de esquerda deve possuir como meta a recuperação dos injustos benefícios econômicos e sociais concedidos pelos governos ao capital em detrimento do desenvolvimento socioeconômico das populações empobrecidas. A formulação de políticas públicas urbanas, ambientais e fundiárias municipais compensatórias deve indicar mecanismos de efetivação do combate à concentração de terras urbanas sob a posse do capital com redistribuição dos ativos financeiros e sociais dos investimentos públicos em favor de comunidades pobres. As compensações visam o estabelecimento das condições da justa distribuição dos benefícios socioambientais, contrabalançando o ônus e os benefícios dos processos da urbanização para o cumprimento da função social da propriedade e da cidade para a moradia digna com sustentabilidade.

A construção de um governo de esquerda popular deve enfrentar os conflitos socioambientais promovidos pelo capital e pelas omissões das administrações públicas, cujas vítimas são populações pobres das cidades, particularmente, as comunidades de favelas. Os conflitos urbanos também possuem uma dimensão simbólica (ACSERALD, 2004), pois constituem uma representação social discriminatória sobre os pobres nas cidades. Um exemplo desta dimensão dos conflitos é a retórica da “desordem urbana” no Rio de Janeiro, que quer imputar, aos moradores das áreas pobres da cidade, o encargo da responsabilidade da desestruturação urbana.

No Rio de Janeiro do século passado e, contemporaneamente, o discurso da “desordem urbana”, do “perigo” e da “higiene social” (FUKS, 1999) compõem estratégias de enfrentamento de conflitos urbanos e ambientais. A “proteção ambiental” e o “desenvolvimento sustentável” são associados e condicionados aos despejos de moradores pobres, a exemplo das ações judiciais movidas pelo Ministério Público Estadual, Prefeitura e Governo do Estado do Rio de Janeiro contra as comunidades do Alto da Boa Vista, Chácara do Céu, Canal do Anil, dentre outras.

Desse modo, a retórica contemporânea de “proteção ao meio ambiente”, por meio de remoção de favelas, é mais “sofisticada” do que os processos ocorridos nas décadas de oitenta e noventa, pois incorporam a representação social do “desenvolvimento sustentável”. Essas condições tornam mais graves os conflitos ambientais entre as comunidades faveladas e o capital imobiliário, pois os litígios judiciais e administrativos são agregados a uma dimensão simbólica e prática da eficiência. Esta estabelece uma desvantagem na origem no enfrentamento judicial e administrativo desses conflitos: a representação social da favela como um “não-lugar” social e a concepção de um preservacionismo que se põe acima de qualquer possibilidade de projeto socioambiental para a moradia. As ações institucionais em “defesa do meio ambiente” no Rio de janeiro utilizam uma ótica da ecoeficiência objetivada (ACSELRAD, 2004), sem consideração da representação e subjetividades sociais do moradores pois, na maioria dos casos, sequer são ouvidos pelos órgãos institucionais.

O morador da favela além de ser visto como ‘contaminado’ pela sujeira à sua volta, é também visto como “agente causador de poluição para o meio ambiente urbano.” (FUKS, 1999). Assim, “a perspectiva ambiental assume, então, a tarefa de articular uma nova chave de interpretação para os ‘problemas urbanos’ a partir do quadro de problemas que a precede.” (FUKS, 1999). O quadro da retórica de proteção ambiental como meio de interpretação dos conflitos urbanos e de controle social, no cenário das relações políticas e sociais do final dos anos oitenta e década de noventa, foi agravado pela ausência de representantes populares nas discussões dos conflitos ambientais (FUKS, 1999).

A percepção da emergência de outras construções simbólicas que re-significam a “questão ambiental” é um das condições sine qua non para a construção de um olhar de esquerda popular sobre os conflitos socioambientais. Tal condição permite a construção de discursos e práticas contra-hegemônicas à retórica do capital imobiliário, cada vez mais inserida na mídia e no discurso e na prática de órgãos públicos, que transforma o meio ambiente em mercadoria e, injustamente, atribui os danos ambientais aos mais pobres. Há experiências rurais de assentamentos de reforma agrária, de comunidades indígenas e quilombolas e urbanas de comunidades de favelas inseridas em áreas ambientais que indicam outros olhares para apropriação sustentável do meio ambiente. A incorporação da re-significação popular do uso do meio ambiente no enfretamento dos conflitos socioambientais é muito relevante na formulação de políticas públicas para a garantia da moradia digna.

O enfretamento dos conflitos socioambientais deve ir além do campo simbólico da representação social que faz a defesa da propriedade privada sob a retórica ambiental. No campo material concreto, exige a intervenção das autoridades do Estado o que denominamos de “cerca viva”: juízes, desembargadores e executantes das decisões judiciais, a quem cabe garantir o cercamento (COSTA, 2005) de territórios privados e do meio ambiente. O cercamento jurídico capitalista é também legitimado pelo discurso da técnica ambiental, típico da ecoeficiência, presente nos órgãos ambientais, na academia e nas orientações da gestão pública. O que Acselrad chama de “reestruturação ecourbana” (ACSELRAD, 2004), estaria levando à despolitização das lutas sociais que envolvem questões socioambientais, transformando as discussões dos conflitos ambientais em temáticas exclusivamente técnicas em detrimento da justiça ambiental (Environmental Justice).

O tecnicismo ambiental, afasta, por exemplo o exame das injustiças urbanas socioambientais a exemplo do racismo ambiental. O racismo institucional se materializa na incapacidade, ou na recusa dos organismos em garantir a promoção da redistribuição e o reconhecimento de determinados grupos, tais como os afro-brasileiros e os povos indígenas. Tal compreensão considera o racismo na esfera das relações políticas e sociais, sem descartar os seus efeitos na auto-estima dos indivíduos. O racismo ambiental lega maiores encargos da degradação ambiental aos grupos étnico-raciais, historicamente atingidos por desvantagens e discriminações. No Brasil a posse da terra historicamente foi marcada pelo racismo ambiental, pois comunidades indígenas, quilombolas , faveladas e demais áreas pobres que são ocupadas, em sua maioria, por populações descendentes de povos indígenas e africanos que estão em permanentes conflitos pela posse e uso da terra, sobretudo quando são as ambientalmente melhores (BULLARD, 2004).

Assim, há uma perspectiva pluralista e multicultural a ser considerada na construção de uma ótica socialista e popular sobre a cidade. Não há, evidentemente, resposta única. Contudo, há princípios e condições inarredáveis tais como: a não submissão ao capital na formulação das políticas urbanas, fundiárias e ambientais, o respeito ao protagonismo da sociedade civil, por meio das organizações populares nas decisões das políticas públicas, o que implica transparência pública e a superação da gestão pública ancorada no hermetismo burocrático que açambarca a participação social nas decisões públicas. Além disso, para a formulação de uma agenda socialista e popular para a cidade devemos assumir as lutas:

– pela re-significação das questões urbano-ambientais à luz da insurgente resistência de comunidades urbanas e rurais nas práticas sociais pela efetividade de princípios da justiça ambiental e a moradia digna na Cidade;
– contra a retórica da “ordem urbano-ambiental” na qual a defesa do meio ambiente é um elemento de valorização das terras de interesses do capital e instrumento de opressão, criminalização e promoção de desigualdades e discriminações contra comunidades urbanas e rurais localizadas em sítios ambientais;
– direito à paisagem integrado pelos territórios urbanos submetidos à desigualdades como a exemplo das favelas;
– pela efetividade do direito à mobilidade urbana nos transportes coletivos por meio de controle e gestão estatal, licitações públicas, passe livre estudantil e acompanhamento popular;
– pela efetividade de Políticas públicas de reapropriação efetiva das mais-valias urbanas, ambientais e fundiárias, concedidas por ativos públicos, em favor do capital imobiliário;
– pela regulamentação e aplicabilidade dos instrumentos urbanísticos ( a exemplo do IPTU PROGRESSIVO) para o combate à concentração de terras e a especulação imobiliária urbana;
– pela efetividade de Políticas públicas de reapropriação de terras urbanas sob posse do capital para a redistribuição com populações de sem-teto e aplicação nas políticas de moradia digna;
– contra a desregulamentação da legislação ambiental, urbanística e fundiária em favor do capital imobiliário;
– pela implementação da regulamentação de território tradicionais urbanos a exemplo dos quilombos;
– pela garantia da participação popular com poder decisórios na implementação de políticas urbano-ambientais nos territórios
– pela inserção das lutas de reconhecimento de gênero, etnia e raça nas políticas urbanas, fundiárias e socioambientais.

Jadir Brito é doutor em Direito (PUC-SP), professor de Direito Ambiental , Direito da Cidade e Direitos Humanos na Universidade Candido Mendes (UCAM) e assessor jurídico do mandato do Vereador Eliomar Coelho (PSOL/Rio-RJ).

Rerências bibliográficas

ACSELRAD, H. As Práticas Espaciais e o Campo dos Conflitos Ambientais. In: ACSELRAD, H. (org.) Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental. IN Henri; HERCULANO, Selene; Pádua José Augusto. Justiça Ambiental e Cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004.

COSTA, Maria de Fátima Tardin. A cerca jurídica da terra na produção capitalista da cidade. Mestrado (Dissertação em Direito da Cidade). Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

FUKS, Mário. Arenas de Ação e Debate Públicos: os Conflitos Ambientais e a emergência do meio ambiente enquanto problema social no Rio de Janeiro (1985-1992). Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, Setembro de 1999.

MOREIRA, Roberto José (org.) In: Mundo Rural e Tempo Presente. Rio de Janeiro: PRONEX, CPDA, UFRRJ, Tempo Presente, 1999.

____________. Renda da natureza e territorialização do capital: reinterpretando a renda da terra na competição intercapitalista. In: Estudos Sociedade e Agricultura, n. 4, 89-111; jun., 1995.