www.robertogranja.com.br

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Morava eu em Paris e tinha um passaporte do Alto Comissariado da ONU para Refugiados, quando, por volta de 1978, viajei com outros exilados para participar de um evento na Costa Rica.  Era um seminário sobre a América Latina, patrocinado pela Federação Mundial da Juventude Democrática.  Não tenho muita certeza do ano, mas o mês era dezembro, sem dúvida.

Bem, todo mundo sabe que sou um desmemoriado.  Então, como posso afiançar assim, tão categoricamente, que foi num mês de dezembro?  É simples.  Esses encontros nunca excediam uma semana e, quando o seminário terminou, estávamos às vésperas do Natal.  Acreditem ou não, isso é sustentado pela própria história que vou contar.

Como não havia voo direto Paris-San Jose, o jeito era fazer uma troca de avião no Panamá.  Mas o aeroporto do Panamá tinha um probleminha: era uma espécie de buraco negro no qual sumiam as bagagens durante a transferência de uma aeronave para a outra.  Embora o sumiço fosse previsível, não se podia evitá-lo.  Parece que a coisa tinha um estatuto de lei da física.  Tratava-se, pelo visto, de uma fatalidade irrecorrível.  E foi assim que desembarquei em San Jose só com a roupa do corpo e a maleta de mão.

O seminário versava sobre a questão democrática na América Latina, ou qualquer coisa que o valha.  E transcorreu burocraticamente, como soia acontecer nesses eventos juvenis internacionais, que reuniam invariavelmente aprendizes de diplomata dos países do “socialismo real” e representantes das juventudes dos partidos socialistas e comunistas ocidentais e dos partidos social-democratas no governo.

A inutilidade dessas reuniões era proverbial.  Se por acaso alguém vislumbrar alguma função nelas, este será um gênio ou uma besta.  Mas, com certeza, era uma oportunidade para se fazer um turismo semi-oficial.  Foi desse modo que conheci a Costa Rica e, de quebra, uma costarriquense cujo interesse teórico pela questão democrática latino-americana se incendiava ao contato das nossas íntimas partes pudendas.   A bem da verdade, foi a ela que me dediquei com maior afinco na meia-dúzia de três ou quatro dias de reuniões a que assisti.

Dessa viagem, ficou-me uma viva impressão da brava companheira costarriquense, reformista social-democrata que se acasalou à perfeição com o meu indomável espírito revolucionário proletário .  Aprendi muito com ela.  Sobre o diálogo silencioso dos corpos, por exemplo.  E, inclusive, sobre estalidos de salivas e gemidos e sussuros que fazem a alma desabafar em suspiros.  Mas também sobre doces palavras castelhanas que não saberia traduzir, mas cujo sentido não me escapava e eriçava-me as mais recônditas penugens pubianas.

Pois encontrava-me nessas lides, que todos podem imaginar, quando me dei conta de que era hora de voltar à Paris.  Voltar pra quê?  Ora, para passar o natal em casa com a minha encantadora esposa, que me esperava.  Todavia, aguardava-me uma ingrata surpresa: as passagens estavam esgotadas por conta das festas de fim de ano.  O leitor (ou será leitora?) poderá imaginar a aflição de um marido apaixonado diante da trágica perspectiva de passar a noite do menino da manjedoura longe de sua adorada esposa.  Era tal meu desespero que esqueci da costarriquense.  Eu queria porque queria passar o natal com a minha amada em Paris.  Então, o vendedor da American Airlines apresentou uma saída: tomar um voo da companhia estadunidense até o aeroporto de Nova Iorque e lá fazer a transferência para um voo da Air France para Paris.  Comprei os bilhetes e embarquei para o aeroporto John Kennedy.

Eu pensava que o pior já havia passado, mas o pior ainda estava por vir.  Antes de prosseguir, uma correção.  Eu venho relatando os fatos como se a dificuldade em voltar para a Europa fosse um problema só meu.  Na verdade, afetava um grupo mais ou menos numeroso de participantes do evento, entre os quais vários brasileiros.  Não citarei nomes, por duas boas razões.  A primeira é a minha falta de memória: simplesmente não lembro.  A segunda é que as pessoas estão vivas e não quero provocar melindres.  (Abro aqui um parêntese para dizer que essa história de poder citar mortos e não poder citar vivos me soa como uma perfeita covardia.  Afinal os vivos têm sobre os mortos a vantagem de poder se defender.  No caso, porém, não citarei vivos nem mortos.  E digamos que é porque me esqueci dos nomes.)

Voava rumo a Nova Iorque com a atenção dividida entre o futuro imediato, que me aguardava em Paris, e o passado recente, que eu deixara ficar definitivamente para trás, mas ainda se insinuava fresco na memória.  Passara a última noite com a costarriquense e fora uma despedida inesquecível.  Ela me pedira que eu deixasse um pouco de mim para ela.  Eu a penetrei, vagarosamente, e emiti golfadas de emoção.  Depois, parti sem olhar para trás.  Trazia opresso no espírito a certeza de que na Costa Rica ficara uma gota do meu ser.  Dessa gota, eu jamais teria notícias.

Havia um pequeno detalhe: eu não tinha visto de entrada para os Estados Unidos.  Todavia, o vendedor da American Airlines me certificara de que não era necessário, pois eu estaria em trânsito no aeroporto John Kennedy por apenas algumas horas ou mesmo menos de uma hora.

Quando desembarquei em Nova Iorque, ainda enlevado com as lembranças do pedaço de mim que ficara na Costa Rica, mostrei na aduana o passaporte e a passagem para o vôo da Air France que partiria em seguida para Paris.  O funcionário olhou para mim e exclamou: Terrorista!  Desentendido, olhei pros lados buscando saber de quem ele estava falando.  Logo me dei conta que era de mim.

Agora, vejam vocês.  Havia todo um grupo nas mesmas condições que eu.  Por que o funcionário da aduana foi invocar logo comigo, e apenas comigo?  Achei aquilo uma tremenda injustiça.  Entre os brasileiros havia até um banido.  Pois o banido passou e eu fui preso.  Muito estranho os critérios dos nossos vizinhos do norte.  Por que eu?  Até hoje não tenho uma explicação plausível.  Eu fora um militante apagado, com escassas e secundárias atuações nas lides da clandestinidade.  Por que eles queriam a mim e não ao banido?  Nunca imaginei que eu pudesse ser matéria de interesse para a CIA ou o FBI.  De certa forma, isso era até motivo de lisonja para mim.  Ou será que eles se enganaram de pessoa?

Fui algemado e conduzido a um canto sob a mira do revólver de um guarda do aeroporto.  Logo se formou uma aglomeração de curiosos.  Invariavelmente, perguntavam ao guarda quem era eu.  O guarda, muito excitado, dizia que eu era um terrorista perigoso.  Tentei argumentar que terrorista, vá lá; mas perigoso, não, pelo amor de deus!  O guarda, um sujeito baixinho, gordinho, meio ridículo, de descendência hispânica, pôs-se possesso e, num espanhol de meter medo, mandou, ameaçador, que eu calasse a boca.  Olhei para o cano do revólver que ele apontava para o meu nariz e achei melhor ficar quieto.  Mas, sabe como é, numa situação dessas, a tendência é a gente ficar com vontade de mijar (isso quando o sujeito tem dignidade e não se caga todo).  Disse ao guarda que precisava ir ao mictório.  Ele ficou me olhando como se eu estivesse dizendo algo sem sentido.  Expliquei que sofria de incontinência urinária, que já não agüentava mais e que iria urinar nas calças ali mesmo.  Diante da minha ênfase, ele me conduziu ao banheiro.  Acontece que eu estava com as mãos algemadas nas costas.  Fiz ele ver que eu precisa de ajuda para abrir a braguilha e direcionar o jato de urina para o recipiente adequado.  Ele fez uma cara de nojo.  Hesitou por um momento.  Finalmente, decidiu liberar as minhas mãos para que eu fizesse por mim mesmo o que de outro modo as mãos dele teriam de fazer por mim.  Dei uma longa e prazerosa mijada, o que aliviou a minha tensão.

O local aonde fui levado em seguida era uma cela ampla, nas instalações do próprio aeroporto, que estava lotada com africanos e asiáticos (talvez muito mais asiáticos do que africanos).  Não havia camas, de modo que me acomodei num banco, certo de que, em meio àquela balbúrdia, no dia seguinte ninguém mais saberia informar quem era eu e o que estava fazendo ali.  Nessas situações, costumo ser acometido de uma sonolência irreprimível.  Dormi.  Fui acordado no dia seguinte por um sujeito que poderia muito bem ser o Agente 007: alto, forte, loiro, de olhos azuis, impecavelmente bem vestido, de terno e gravata, trato cordial, falava um português gramaticalmente correto e sem sotaque.  Seria, talvez, um frio assassino, como soem ser os agentes da CIA; não me pareceu, entretanto, um sádico.  Perguntou se eu aceitava partir num voo para Amesterdã que saía daí a 15 minutos.  Prontamente, disse que sim.  Embarcaria para qualquer lugar que não fosse o Brasil.  Devolveu-me o passaporte e conduziu-me ao avião.

O calendário marcava o dia 24 de dezembro quando desembarquei à tarde no aeroporto de Amesterdã.  O funcionário da aduana holandesa tomou um susto ao inspecionar o meu passaporte.  Haviam estampado lá algo assim: Perigoso terrorista expulso dos Estados Unidos.  O holandês perguntou o que eu havia feito contra os estadunidenses.  Respondi que, simplesmente, não fizera nada.  Contei que faria uma baldeação no aeroporto John Kennedy e que fora detido sem mais nem menos.  O amesterdamês acreditou na sinceridade de minhas palavras.  Apenas comentou: Esses americanos são malucos!

Ainda deu tempo de tomar o trem e chegar a Paris antes da meia-noite.  Minha adorada esposa me aguardava aflita.  Passamos a ceia de Natal juntinhos.  Já nem me lembrava mais da costarriquense.

E quer saber de uma coisa?  Sinceramente, acho que essa história de costarriquense só pode ter sido mais uma astúcia da minha imaginação.

Sergio Granja é autor do romance Louco d’Aldeia em dois tempos (Record, 1996)