RelogioNa saleta não há um relógio de parede. Estranho, muito estranho, porque escutarás o seu tique-taque. Não exatamente assim, mas um tique, uma pausa ligeira, um taque, que repetir-se-ão em intervalos regulares, numa mesma altura, num compasso monocórdico, em perpétua seqüência monótona: tique… taque… tique… taque… tique… taque…

Encostarás o relógio de pulso ao ouvido. As batidas não virão dali. Claro que não! Trouxera-lo durante anos, e nunca emitira um som. Fora sempre um marcador de horas preciso e silencioso.

Mas, então, de onde viria aquela percussão: tique… taque… tique… taque… Os nervos alterar-se-ão. Que diabos será aquilo? Que significaria?

– Calma, cara, você está se descontrolando, sussurrará uma voz.

Olharás para os lados, não verás ninguém. Desconfiado, procurarás embaixo do sofá, atrás, em cada canto, no verso de um quadro bizarro pendurado na parede… mas a saleta estará vazia. Seria a voz das horas?

Um zumbido próximo ao ouvido esquerdo. Ruídos do inconsciente? Concentrar-te-ás e, atento ao zuummm, baterás as mãos, espalmadas, de súbito, esmigalhando um pernilongo sanguinolento.

E o quadro? Maneirista? O Reencontro do Corpo de São Marcos, de Tintoretto?

Tique… taque… tique… taque… o pulsar do relógio de parede que não há. Estarás confuso. O enigma aturdir-te-á.

E a voz outra vez:

– Calma, cara, você está imaginando coisas.

Ora! Imaginar como, se sequer haverás cogitado? Imaginar o que nunca terás suposto? Não, aquilo estará muito esquisito. Sentirás um calafrio. Arrepiarás. O pânico apossar-se-á de ti.

– Calma, cara, calma, ditará a voz que não terá timbre nem sotaque, que não será de homem nem de mulher, nem adulta nem infantil…

Esbarrarás a vista num recorte de jornal que se pegara ao calcanhar cambo do teu sapato. Será um anúncio dos classificados.

 


Procura-se objeto inexistente

O objeto em questão é uma pequena caixa oblonga. Pode ser de madeira ou papelão reforçado, ao estilo de uma tabaqueira ou caixinha de rapé. É importante que tenha uma tampa removível que a deixe bem cerrada. Nela, deve-se poder guardar as lembranças afetivas, as saudades e os devaneios, para que nunca se desvaneçam. E é preciso ainda que lá caibam as esperanças. Deve ter uma aparência sedutora, como a boceta de Pandora. Mas é imprescindível que não origine males dissimulados.

 

O tique-taque martelar-te-á o crânio. O espaço estreitar-se-á. O ar escasseará. As paredes fechar-se-ão sobre ti. O chão oscilará bêbedo. O teto desabará em câmara lenta. Sentirás ânsias de vômito. Suarás. O calor tornar-se-á insuportável.

… lembranças afetivas…

Não há ali onde lavar as mãos. Nem um lenço de papel para limpá-las. Esfregá-las-ás, então, para esfarelar os restos de pernilongo grudados nas palmas das tuas mãos.

Um desconforto crescerá dentro de ti, deixando-te ofegante, as pernas bambas, a memória embaralhada, o raciocínio entorpecido, os olhos embaçados, submetendo-te o físico e a vontade, dominando-te por inteiro.

Desejarás sair dali. Os movimentos não responder-te-ão. Quererás gritar. O grito entalará na garganta.

De repente, o ranger da porta. Sobressalto. Pavor. Virar-te-ás, ansioso, acuado: esquelética, uma mulher de branco, tez pálida, olheiras roxeadas, fitar-te-á.

Retesarás, gélido.

Rosto encavado, mãos ossudas, a voz impessoal dirigir-se-á a ti:

– É a sua vez.

– Ahn!?

Haverá chegado tua hora.

 

Sergio Granja é autor do romance LOUCO D’ALDEIA EM DOIS TEMPOS (Record, 1996).