O filme “O som ao redor”, de Kléber Mendonça Filho, expõe a incompreensão do Brasil sobre si mesmo e sobre as raízes históricas da violência que atravessa nossa vida urbana.

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Recife, berço da bárbara civilização brasileira. Num bairro que sintetiza o Brasil, ilhas de luxo em meio ao oceano de favelas. Empregadas domésticas, mulheres negras, lavam as roupas, passam o café na hora certa, são pontuais na faxina. A riqueza hereditária acolhe as novas gerações de patrões. Enquanto cada um cumpre suas funções cotidianas, entre ordens, favores e gestos cordiais, há uma tensão subterrânea que cresce, um susto que está por vir. Por isso, mais câmeras de segurança, alarmes, medo, grades elétricas, luzes automáticas, sensores de movimento, mais tecnologia antipânico e novos guardas noturnos particulares.

No primeiro longa-metragem de Kléber Mendonça Filho, o bairro de Setúbal é o protagonista. Cresceu rápido, vertical e paranoico. Foi habitado pela típica classe média alta conservadora e por uma aristocracia rural que se reinventou na cidade. Francisco é o proprietário de quase todos os imóveis de alto padrão da região. Melhor dizendo: senhor Francisco. Ele é também proprietário de um engenho decadente no interior, onde passa a maior parte do tempo. Seu neto, João, trabalha como corretor dos apartamentos do avô, odeia o que faz e está empolgado por causa do novo romance com Sofia, que também já morou no bairro. Maria, a empregada doméstica que serve a casa de João, viu o menino nascer. Ele é gentil, íntimo e preocupado. Brinca com as netas da empregada, é cuidadoso com a filha, também empregada, que às vezes vai substituir a mãe. É como se fossem “da família”. A pobreza, como a riqueza, também é hereditária. João é decididamente cordial. Aliás, é um exemplar do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda no século XXI, que trata as relações de exploração por meio do afeto. Ele é o eixo do filme, nos conduz pelas cenas e nos apresenta o bairro e seus ruídos.

A chegada de uma equipe de três guardas noturnos, contratados para proteger a rua entre 7 da noite e 7 da manhã, é o mote da história. Clodoaldo, o chefe dos guardas, é misterioso e sagaz. Sua simpatia oblíqua gera certa desconfiança. Conforme o tempo passa, cresce a sensação de que algo terrível está prestes a acontecer. O outro neto do senhor Francisco é Dinho, que apesar da farta herança é um ladrão de toca-discos de carros. Seu Francisco já havia alertado: o neto era problema familiar, nada de Clodoaldo se meter. Mas, após um telefonema suspeito, Dinho se indispõe com os guardas e os ameaça com a eficaz postura de “filho do dono”, tão típica da cultura escravista, do sentimento hereditário de patronagem. A tensão cresce. Os tambores surdos e intercalados por largos silêncios aprofundam a atmosfera de mistério. É o som ao redor, africano, aquele que não ousamos escutar.

Em uma das poucas casas restantes no bairro mora Bia, com o marido e dois filhos. Aparentam ser o núcleo mais modesto da rua – ou melhor, o menos aristocrático, já que aulas de chinês particular para crianças é um luxo nada corriqueiro. Atormentada pelos latidos noturnos do cachorro do vizinho, Bia estende sua insônia madrugada adentro, entre um e outro baseado comprado do vendedor de água. Através da noite, observa as pegadas furtivas de um vulto em cima do telhado da frente. Enquanto isso, sua filha sonha com uma multidão de ladrões que invade o quintal. Acorda assustada.

A relação entre patrões e empregados está sempre em evidência, dos esporros às gentilezas. Na reunião de condomínio do edifício onde vive João, a maioria defende a demissão, por justa causa, do porteiro sonolento que trabalha para eles há quase vinte anos. A atitude é do tipo “cansei”: “Cansei de ver a minha Vejachegar sem plástico em casa, é revoltante”, afirma uma moradora. O filho pequeno de um condômino gravou um vídeo do porteiro dormindo em serviço. “Só pode ser provocação”, dizem. João defende a permanência do empregado e fica isolado. Os demais alegam que seria muito caro pagar os direitos. Antes da votação, ele prefere sair para encontrar-se com Sofia. A cordialidade de João é ingênua. Trata os empregados que o rodeiam com carinho e, diante de uma injustiça, desabafa meia dúzia de palavras rudes e se retira.

Quando João e Sofia decidem visitar seu Francisco no engenho, encontram um cenário de ruínas do antigo complexo açucareiro: um cinema antigo, máquinas invadidas pelo mato, a casa-grande, a senzala e os passos do andar de cima. Revisitam o passado imperial. E no meio de um refrescante banho de cachoeira compartilhado pelos três, embaixo de uma densa massa de água que cai pesada e gélida sobre seus ombros, vem a cena-chave do filme: num piscar de olhos, a água se transforma em sangue, vermelho vívido. São poucos fotogramas. João é encharcado pelo sangue que construiu a riqueza do avô. É uma pista para explicar a violência latente da vida contemporânea. O escravismo está entre o passado e o futuro.

Essa cena faz emergir, em frações de segundo, a história subterrânea que sustenta a história visível. É a mensagem forte do filme. Que o clima de medo, de catástrofe iminente, de terrível ameaça, não precisou de uma gota de sangue para se expandir. Precisou de uma cachoeira. Sobre os jovens ombros de João, pesa o passado de seu avô, com seus capatazes e latifúndios. A chave explicativa da violência contemporânea não seria nem a maldade nem o imediatismo. Seria sim uma violência histórica e estrutural, que permeia o cotidiano brasileiro e já está completamente naturalizada. A paranoia securitária que vivemos é diretamente proporcional à incompreensão das elites nacionais sobre as raízes históricas da violência. Mais que isso: a incapacidade crônica dessas elites de enxergar a reprodução da cultura escravista através dos séculos e as manifestações novas por ela assumidas no presente.

Não façamos tábula rasa da história. O escravismo brasileiro como sistema econômico acabou há mais de um século. Mas o som ao redor não deixa dúvidas: o escravismo como fenômeno cultural está vivo, renovado pelos hábitos modernos das elites brasileiras. O racismo é disfarçado. Que as empregadas domésticas sejam, no filme, como na realidade, predominantemente negras, não deve ser coincidência. O comportamento autoritário-patronal se expande para muito além da casa-grande. A cordialidade, face fundamental da exploração social, também se sofisticou. Permite que sejamos cada vez mais flexíveis no ato da violência cotidiana. Permite que nossa cultura escravista se adapte às aparências do politicamente correto. Que o intimismo alivie a culpa inconsciente dos herdeiros da aristocracia, dos novos senhores de engenho das cidades.

Mas, afinal, quem é responsável pela cachoeira de sangue? Provavelmente, quem tem medo da vingança.

Joana Salém Vasconcelos

Formada em História na USP e faz mestrado em Desenvolvimento Econômico na Unicamp

Ilustração: Divulgação