Sylvia Rivera é amplamente reconhecida pelo atirar do primeiro sapato (ou garrafa, cocktail Molotov, etc) em Stonewall. Contudo, como a maioria das grandes figuras da história, Sylvia foi uma verdadeira revolucionária da justiça social.

Sylvia Rivera e Marsha P Johnson com cartaz a dizer “poder para as pessoas”.

Sylvia Rivera e Marsha P Johnson com cartaz a dizer “poder para as pessoas”.

Quando o nome Sylvia Rivera é mencionado, um dos primeiros pensamentos, comentários ou reflexões que se tem é, sem dúvida, que “Sylvia é amplamente reconhecida pelo atirar do primeiro sapato (ou, dependendo das recordações, a primeira ou a segunda garrafa, cocktail Molotov, etc) em Stonewall.”

A partir desse ponto, a memória e análise de Sylvia é fortemente influenciada por este momento pivot na história queer. Muito pouco daquilo que é recordado, falado ou escrito sobre Sylvia se desvia muito do seu envolvimento em Stonewall e no movimento LGBT de condução predominantemente branca e de classe média que se lhe sucedeu.

E, tristemente, mesmo no interior da comunidade Trans* à qual Sylvia dedicou a sua vida, ela é essencialmente branqueada, junto com a marginalização ou mesmo total omissão das suas políticas radicais.

Contudo, como a maioria das grandes figuras da história, Sylvia foi uma verdadeira revolucionária da justiça social, se não insurrecta, uma figura cuja vida, ideias, ações e palavras abarcavam uma essência interseccional.

Em 2007, um artigo de Jessi Gan no Centro Journal tinha por título “Ainda na parte detrás do autocarro”: A luta de Sylvia Rivera é um dos poucos artigos que critica a memória de Sylvia Rivera por muitos escritores à luz da sua clara omissão da interseccionalidade de Sylvia. Sylvia permaneceu predominantemente uma figura desconhecida – apesar disso, o seu ativismo, os seus escritos e a sua influência dentro do movimento “gay e lésbico” de Nova Iorque do final dos anos 60 e início dos 70, embora breves, foram de grande influência.

Foi só com a publicação de Stonewall, de Martin Dubermans, que o seu papel nos motins de Stonewall se tornou amplamente conhecido. E, não muito depois disto, Sylvia ressurgiu no meio nova-iorquino com a sua revolta e paixão inatas, lutando ruidosamente pela juventude queer sem-abrigo e pelas pessoas Trans* não-brancas, até à sua prematura morte, em Fevereiro de 2002.

No entanto, mesmo após a sua morte, os nomes Sylvia Rivera e Stonewall estavam tão interligados que muito do seu trabalho revolucionário pela justiça social nunca foi reconhecido.

Felizmente, devido à extensa pesquisa e subsequente publicação de The Gay Liberation Movement in New York (O Movimento de Libertação Gay em Nova Iorque), Stephan L. Cohen coloca em contexto um retrato de Sylvia que vai muito para além de Stonewall e nos permite um relance sobre a sua vida e as suas ações através de um excelente tratado em S.T.A.R. (Street Transvestite Action Revolutionaries – Travestis de Rua em Acção Revolucionária). Com o surgimento das políticas Transgénero durante os anos 1990, Sylvia tornou-se na matriarca deste movimento ressurgente.

Porém, a sua envergadura neste movimento foi antes de mais devida ao seu documentado papel nos motins de Stonewall, o que foi utilizado por bastantes ativistas trans* para exigirem um assento no movimento gay e lésbico e a inclusão das pessoas transgénero nas organizações e lutas pelos direitos civis gays e lésbicas existentes.

Contudo, regressando à análise de Jessi Gan, reproduzo o excerto abaixo, que vai ao coração do facto de Sylvia ter sido muito mais do que Stonewall. De facto, os alicerces da rebelião de Stonewall reflectem mais as questões raciais e de classe enfrentadas pela juventude queer sem-abrigo do que a visão tradicionalmente abraçada que permitiu a gays e lésbicas branc*s de classe média verem-se a si mesm*s como resistentes e radicais.

“… tal como “gay” tinha excluído “transgénero” no imaginário de Stonewall, a alegação de que “também houve pessoas transgénero em Stonewall” possibilitou as suas próprias omissões de diferença e hierarquia dentro do termo “transgénero”. Rivera era pobre e latina, enquanto algum*s ativistas trans* que fizeram reivindicações políticas com base na sua história eram branc*s e de classe média. Ela foi louvada por se tornar visível como trans*, enquanto a sua visibilidade racial e de classe era simultaneamente oculta.

Alguns projetos de recuperação oleados pela memória de Rivera – no seu esquecimento simultâneo das lógicas supremacista branca e capitalista que construíram a sua alteridade racializada e de classe – serviram para unificar as políticas transgénero em torno de um eixo genderizado. As omissões permitiram a* ativista trans* Leslie Feinberg, no seu livro Trans Liberation (Libertação Trans), invocar uma ampla coligação de pessoas unidas exclusivamente por um desejo político de levar o género “para lá do azul ou rosa.”

Esta abordagem pluralista celebrou a luta de Rivera como um “rosto” num mar de rostos do “movimento trans”. Da mesma forma, a antologia “Gender Queer: Voices from Beyond the Sexual Binary” (Vozes de além do Binarismo Sexual), apelou a um “movimento de género” que garantiria a “igualdade plena para tod*s *s american*s, independentemente do género.” A inclusão da história de vida de Rivera na perspectiva Gender Queer, largamente branca, uma “diversidade”multicultural e auteticidade histórica para a juventude, identidade unitária não marcada racialmente,“genderqueer”, emergida do ambiente universitário de classe média.

Mas a supressão da intersecionalidade em nome da fabricação de mitos unitários serviu para reinscrever outros mitos. O mito de que toda a opressão trans* é igual deixou o capitalismo e a supremacia branca por desafiar, excluindo frequentemente alinhamentos unitários não ancorados na análise de género e permitindo simultaneamente às pessoas transgénero evitarem considerar a sua cumplicidade na manutenção de sistemas de opressão simultâneos e entrelaçados.

Rivera é, para além disso, profundamente importante numa historiografia Latina, transgénero e queer na qual as histórias das pessoas transgénero não-brancas são poucas e distanciadas. (…) Eu gostaria, no entanto, de concluir com o seguinte excerto de Cathy Cohen, como detalhado no grande artigo de Jessi Gan sobre Sylvia no Centro Journal. A cientista política Cathy Cohen sugeriu que as políticas queer falharam, não estando à altura da sua promessa inicial de transformação radical da sociedade. Mais do que libertar de sistemas de opressão, Cohen diz que a agenda queer procurou a assimilação e a integração nas instituições dominantes que perpetuaram esses sistemas. Agarrando-se a um único modelo de opressão que divide o mundo em “hetero”e“queer” e insiste que *s hetero oprimem enquanto *s queer são oprimid*s, as políticas queer negligenciaram a análise de como “o poder informa e constitui sujeitos privilegiados e marginalizados em ambos os lados desta dicotomia.”

Por exemplo, ao fechar os olhos à forma como o Estado continua a regular as capacidades reprodutivas das pessoas não-brancas através da encarceração. Cohen sugere que isto se deve ao quadro teórico das políticas queer se amarrarem a categorias identitárias rígidas e redutoras que não permitem a possibilidade de exclusões e marginalizações dentro das categorias. Sendo igualmente colocada de parte a possibilidade de as próprias categorias poderem ser instrumentos de dominação necessitados de destabilização e reconceptualização.

Notas da Transzine:

Nota de linguagem

A linguagem desta zine tenta ser inclusiva e não-binária. O que quer isto dizer? Que evitamos masculinizar e/ou feminizar os pronomes e as palavras. Escolhemos usar o * (asterisco) porque sabemos que existem múltiplas identidades e pronomes pelos quais preferimos que nos tratem. Desejamos que toda a gente sinta que a sua identidade e pronome escolhido são igualmente visíveis e valorizados (quer sejam enquanto “ele”, “ela” ou outras opções). Acreditamos, ainda, que esta interrogação da linguagem é uma parte importante de uma prática trans* crítica.

A utilização de trans* (com asterisco) ou trans (sem asterisco) é feita, regra geral, indiscriminadamente por esta utilização estar a ser objeto de reflexão e pela edição não ter tomado nenhuma medida normativizadora dos textos nesse sentido. Todavia, quando utilizada, segue a intenção de Lucas Platero (2014), de marcar a diversidade de experiências, vidas e conhecimentos, por forma a incluir uma multitude de corpos e vidas tidas como fora da norma e/ou que a rejeitam.

Nota sobre as nuances na utilização do termo“queer”

Ao contrário do ativismo político mais radicalizado, de base feminista, que tem por referência a “teoria queer” – baseada na fluidez de identidades sexuais e de género e da crítica da homonormatividade dos movimentos LGBT tradicionais institucionalizados – nestes contextos “queer” é usado como referência a esses mesmos movimentos institucionalizados que buscam uma “normalização” baseada em binarismos identitários rígidos. Fazemos então uma nota para as nuances na interpretação do termo “queer” que deve ler-se, quando assinalado e contextualmente, como“LGBT”, pois referem-se aos movimentos tradicionais. Pedimos a* leitor* redobrada atenção para não se confundir esse temo com a denominação política radical originada pela “teoria queer”.

Artico publicado originalmente em Queers Without Borders em 2010. Tradução de Sérgio Vitorino para a Transzine 2, a fanzine sobre questões trans do colectivo Panteras Rosa (frente de combate contra a lesbigaytransfobia), lançada a 30 de outubro de 2016.

Fonte: Esquerda.Net, 14 de fevereiro de 2016