Entre as revelações, está a de que a ordem para matar é validada pelo presidente dos EUA e que os ataques com drones multiplicaram-se no governo Obama.
Milhares de ataques de mísseis e de mortes, em apenas meia dúzia de operações. O programa de assassinato seletivo conduzido pelos Estados Unidos no Afeganistão ou no Iémen, como parte da sua luta contra o terrorismo é extenso – e muito sigiloso. A investigação do site The Intercept, “The Drone Papers”, revela muitos aspectos desconhecidos do programa, e confirma outros já conhecidos, no momento em que a França também começa a realizar ataques direcionados na Síria, com a ajuda dos serviços secretos dos EUA.
1) Até nove em cada dez pessoas mortas não eram alvos
A primeira constatação a partir dos documentos do exército norte-americano é a ineficiência do caráter “seletivo” dos assassinatos por drones. Numa análise detalhada dos resultados da operação Haymaker, no norte do Afeganistão, os relatórios militares revelam que o número de “jackpots” – morte da pessoa visada por um ataque – é baixo: em fevereiro de 2013, a operação tem 35 “jackpots”, e 200 “EKIA” – inimigos mortos em combate – no mesmo período.
Os militares dos EUA usam este termo para designar as pessoas mortas que eles identificam como insurgentes ou soldados inimigos não diretamente visados – para estabelecer esta classificação, o exército baseia-se nas suas próprias fontes, como imagens captadas, também, por drones. Contas que tendem a subestimar o número de vítimas civis, diz o The Intercept. Durante um período de cinco meses no Afeganistão, o site descobriu que nove em cada dez pessoas mortas não eram os alvos dos ataques.
O The Intercept também cita um estudo realizado pelo académico Larry Lewis, que analisou os resultados das operações americanas no Afeganistão durante vários anos. Segundo os seus cálculos, os ataques realizados por drones na região mataram muito mais civis que os bombardeamentos da aviação: ele conclui que os drones matam, em média, dez vezes mais civis do que os aviões norte-americanos. Uma diferença explicada em parte pela baixa qualidade das informações em que se baseiam os ataques por drones.
2) A ordem para matar é validada pelo presidente dos Estados Unidos
Para determinar quem pode ser alvo de um ataque de um drone, o exército dos EUA segue uma complexa cadeia de comando, com alguns aspectos não detalhados nos documentos publicados pelo Intercept.
Tudo começa com a criação de um “dossier”, chamado “Cartão de Basebol”, que estabelece o perfil da pessoa, as razões pelas quais o seu assassinato é solicitado, e que segue um processo de validação em sete etapas. Em média, leva-se dois meses para obter todas as aprovações necessárias; em seguida, começa um período de sessenta dias, durante o qual o ataque é autorizado.
Na última cena do documentário Citizen Four, sobre as revelações do informador Edward Snowden, Glenn Greenwald, fundador do Intercept, já sugeria possuir documentos secretos sobre o programa de drones americanos, que lhe foi transmitido por outro informador. No filme, podemos vê-lo a desenhar uma pirâmide num pedaço de papel, mostrá-la a Edward Snowden e dizer: “vai até o presidente” – o diagrama que aparece rapidamente na tela assemelhava-se bastante ao publicado agora pelo Intercept.
3) Os assassinatos são decididos, essencialmente, com base em espionagem eletrónica
Os “Cartões de Basebol” e os dossier compilados pelas forças americanas são, em grande parte, elaborados com base em fontes de inteligência eletrónica – programas de vigilância em massa da NSA e escutas, como explica o Intercept. Os próprios drones são utilizados para recolher grande quantidade de dados: armados ou de observação, a maioria dos drones utilizados pelos militares americanos dispõe de uma antena de retransmissão, que os permite triangular a posição de um telemóvel com grande precisão.
De acordo com uma fonte anónima citada pela reportagem, o sistema “conta com máquinas muito potentes, capazes de recolher uma quantidade incrível de dados”, mas “comporta, em muitos níveis, riscos de erros de análise e de atribuição”. De acordo com a mesma pessoa, “é incrível o número de casos em que um seletor (uma identificação com login e senha, por exemplo) é atribuído à pessoa errada. E só várias semanas ou meses depois percebe que a pessoa que está a seguir não é o seu alvo, porque está na verdade a rastrear o telefone da mãe daquela pessoa, por exemplo”.
4) Os critérios para entrar na “lista de morte” são vagos
Oficialmente, a política dos Estados Unidos é a de atirar para matar apenas em casos em que o alvo “represente um risco contínuo e iminente para a segurança dos americanos”. Os documentos publicados pelo Intercept, no entanto, mostram que apenas um critério é analisado para determinar se uma pessoa pode ou não ser incluída na lista de alvos potenciais: o facto de “representar uma ameaça para as tropas dos EUA ou para os interesses americanos”.
Este critério particularmente vago tem pouco sentido em algumas regiões do mundo onde os militares dos EUA só realizam ataques direcionados por drones – no Iémen, por exemplo, a presença dos EUA é quase inexistente. Os ataques de drones, no entanto, já mataram 490 pessoas no país, segundo dados do próprio exército.
5) “Capturar ou matar” tornou-se “Matar”
As campanhas direcionadas do exército americano são chamadas de “Capture/kill” – capturar ou matar. Mas, no caso de ataques de drones, “a expressão é enganadora – “Capturar” escreve-se em minúsculas: nunca capturamos ninguém”, reconheceu o tenente-general Michael Flynn, ex-chefe da agência de inteligência do exército.
A escolha de se concentrar em ataques letais por drones, em vez de operações de captura, de maior risco, tem implicações para o tipo de informações recolhidas. Sem interrogatórios, os militares fiam-se cada vez mais na inteligência eletrónica, em detrimento da inteligência humana, considerada, no entanto, essencial.
6) “Exploração e análise” são os primos pobres das operações
A doutrina do exército americano sobre terrorismo é resumida numa sigla: FFFEA. Find, fix, finish, exploitation and analysis – “encontrar, consertar, dominar, explorar e analisar”. Mas os documentos mostram que a última parte do processo é quase inexistente em ataques de drones, particularmente no Leste da África e no Iémen.
Na maioria dos casos, depois de um ataque mortal, não há soldados no local para recuperar documentos, computadores ou telemóveis, nem para interrogar os sobreviventes. O que leva a “becos sem saída” em matéria de inteligência.
7) Os ataques de drones fortalecem os adversários dos EUA
Devido à falta de precisão dos ataques e aos erros de informação que levam a atingir as pessoas “erradas”, as campanhas de drones ajudam a fortalecer os adversários americanos, explica o Intercept. O site menciona o exemplo de Haji Matin, morto por um ataque em 2012: este comerciante de madeira tinha sido denunciado como militante talibã por rivais nos negócios. O exército dos EUA bombardeou a sua casa, matando vários membros de sua família… e transformou-o num líder local da militância anti-americana.
8) O número de ataques multiplicou-se no governo Obama
Antes da posse de Barack Obama, apenas um ataque de drone tinha ocorrido no Iémen, em 2002. Em 2012, houve um ataque a cada seis dias naquele país. Desde agosto de 2015, estes ataques já mataram 490 pessoas.
Um ex-funcionário dos serviços secretos do governo dos Estados Unidos disse que o uso de drones “foi a escolha política mais vantajosa: de baixo custo, não faz vítimas americanas. É bem recebida nos EUA, sendo impopular apenas no exterior. Os danos desta política aos interesses americanos só serão visíveis a longo prazo”.
9) A distância e o “efeito canudo” reduzem bastante a eficácia dos drones
Apesar da tecnologia avançada, e da impressão de que podem intervir em qualquer lugar e a qualquer momento, os drones não são eficazes em todas as situações. Para conseguir identificar, rastrear e abrir fogo contra um suspeito, é preciso manter contato visual por um longo período. No entanto, em algumas áreas, especialmente no Iémen, a longa distância que os drones precisam percorrer torna esta cobertura permanente muito difícil, pois eles muitas vezes gastam mais tempo de voo para chegar à sua posição do que na “ação” propriamente dita.
Além disso, os operadores de drones são vítimas de um “efeito canudo” (como se estivessem a avaliar o todo observando através de um canudo): o alcance das câmaras é limitado, o que leva a dificuldades para seguir os “suspeitos” e aumenta o risco de erros de identificação.
10) Para ampliar o programa de drones, o exército americano multiplicou o número de bases na África
Para reduzir as distâncias percorridas pelos drones, o comando americano discretamente aumentou o número de bases, especialmente na África. Estas bases secretas complementam o sistema criado pelo U.S. Africa Command, cuja base principal está no acampamento Lemonnier, antigo posto avançado da Legião Estrangeira da França.
Original: Le Monde
Tradução de Clarisse Meireles para a Carta Maior.
Fonte: Esquerda.Net, 20/10/2015