viaduto-alcantara-machadoA população de rua da cidade de São Paulo está estimada em cerca de 16 mil pessoas, segundo dados da FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). A metade vive na região central da cidade, especialmente na Sé. Há inúmeros debates em torno deste tema e nos atentamos ao que acontece especificamente na Avenida Radial Leste, debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado. Buscando novos paradigmas no atendimento e fortalecimento da população em situação de rua, trabalhadores sociais da prefeitura se uniram para formar o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais).

A ideia não agradou muito ao poder público e mesmo a socialmente elogiada gestão Haddad se zangou. Por três vezes tentou desalojar as tendas e, agora, ameaça conseguir – além de demitir os trabalhadores ligados ao Catso. Marcamos presença no ato de rua que o coletivo chamou no último dia 26 de novembro, quinta-feira, em frente à prefeitura de São Paulo e entrevistamos a trabalhadora social Pamela Maria para um entendimento maior da questão.

“A única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é gentil, entre aspas, que é como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos, do qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto, mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto”, afirmou.

O fechamento do espaço estava marcado para o último dia 4 de dezembro. Na tarde do dia 7, entramos em contato novamente com Pamela Maria para atualizar a entrevista. O Catso, juntamente com o Padre Júlio Lancelotti da Pastoral do Povo de Rua, acionou o Ministério Público contra o fechamento da tenda. Nada aconteceu e as tendas foram oficialmente fechadas. Se na Tenda Bresser a prefeitura retirou todos os móveis na última sexta-feira, a Tenda Alcântara segue ocupada pelos trabalhadores sociais e pela população de rua em resistência às políticas da prefeitura.

“A proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico, o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo: não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes”.

Confira abaixo a entrevista com Pamela Maria, do Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais.

Correio da Cidadania: Como começou o Catso (Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais) e o que tem desenvolvido debaixo dos viadutos Bresser e Alcântara Machado, na Radial Leste, junto à população de rua?

Pâmela Maria: Fazemos um trabalho de quase dois anos com a população de rua. Essencialmente, temos duas frentes no coletivo. Uma com os trabalhadores sociais, que são precarizados. Fazemos essa discussão com todas as frentes que trabalham com a população de rua e também com outras esferas do serviço social.

A outra frente é diretamente com a população de rua, que é na verdade onde mais nos dedicamos. O objetivo é dar voz ao povo de rua, criar um espaço onde seja possível se organizar horizontalmente, buscando a autonomia desta população para que ela tenha suas demandas colocadas em pauta por eles mesmos. A assistência social tem a característica de fazer propostas de cima para baixo e isso nunca é questionado, muito menos pela população rua.

Por isso, temos a questão de trazer a população de rua para os ambientes onde eles não seriam bem vistos e quistos, que são as reuniões e os outros espaços do poder público, no caso da prefeitura, subprefeitura e assim por diante. Nós os levamos lá para que falem da vida deles, ao invés de serem representados.

Correio da Cidadania: Qual tem sido o resultado dessa ação prática e como os moradores de rua tem recebido o trabalho?

Pamela Maria: Temos uma caminhada com várias vitórias. Por mais que sejamos um coletivo de apenas dois anos, já conseguimos libertar homens que foram presos em albergues e revogar três fechamentos das tendas Alcântara Machado e Bresser – essa é a quarta vez que estão tentando.

Na minha visão pessoal, mesmo estando há pouco tempo no Catso, sinto que a população de rua vê o próprio exemplo de estarmos na rua com eles, que estamos juntos. Que eles podem contar com a gente, que se agora o fechamento vier a acontecer mesmo, vamos estar lá, de peito aberto, se tiver repressão ou se não tiver, independentemente disso. Vendo-nos, eles vão nos conhecendo, nós vamos nos organizando juntos e eles nos veem como amigos.

Correio da Cidadania: Como é organizado o dia-a-dia nas tendas? Que diferenças há entre o que o Catso propõe em relação ao que acontecia anteriormente?

Pamela Maria: A Tenda Alcântara desde o princípio tinha pessoas que depois vieram a formar o Catso. Desde o começo tínhamos a proposta da horizontalidade e das assembleias abertas. Todas as decisões que são feitas na Alcântara – onde estou mais presente – referentes a horários de banho, abertura, fechamento, televisão, é tudo decidido em assembleia, todas as regras são decididas em assembleia, e nós buscamos entre os trabalhadores que a horizontalidade seja praticada em todos os níveis. Todo mundo tem voz, todo mundo decide, todos podem falar burocraticamente com o poder público. Tem também uma questão: todo mundo lava banheiro e faz absolutamente todas as coisas que precisam ser feitas no espaço.

Buscamos terminar com o vínculo assistencialista e colocar a população como um agente. É como se nós não estivéssemos empregados, estamos juntos com eles em todas as decisões. No começo, a polícia não deixava montar nem barracas de lona por lá. A postura dos trabalhadores sempre foi de acompanhar as abordagens, bater de frente – muitas vezes fisicamente – com o rapa, para impedir que eles fizessem esse tipo de ação. Com o tempo, ao sentir-se segura, a população de rua começou a fazer suas malocas de madeira.

A ocupação Alcântara Machado aconteceu logo após uma ação da polícia na qual levaram todas as coisas embora e derrubaram todos os barracos. Daí o pessoal tocou fogo nos restos dos barracos e logo ocupou uma academia que tinha na frente da tenda, no próprio viaduto. Ali, fizeram uma cozinha comunitária, foram montando e se organizando. No viaduto Bresser, a comunidade surgiu de forma mais orgânica. Eles chegaram, montaram as malocas de lona, foram ficando, melhorando o espaço e aos poucos substituíram a lona pela madeira.

Correio da Cidadania: Passamos pela gestão Gilberto Kassab, um completo desastre sob os aspectos sociais e, de 2012 para cá, houve a mudança para o prefeito Fernando Haddad. Para muita gente, significava uma mudança de postura. Até que ponto tal mudança aconteceu, ou não?

Pamela Maria: vemos que a única diferença do Haddad para o Kassab é que o higienismo dele é “gentil”, entre aspas, como costumamos falar do atual prefeito, pois é visto como bom moço, que faz projetos bem vistos como o Programa Braços Abertos (de auxílio a dependentes químicos na chamada Cracolândia, centro de São Paulo), o qual muitas pessoas de fora veem como um baita projeto.

Mas ele é tão higienista quanto o Kassab. Expulsa a população de rua tanto quanto. Criou a IOPE, que é uma polícia de elite da GCM – antes desarmada e hoje armada. Portanto, não dá para dizer que só o Kassab é o grande higienista enquanto na gestão Haddad as coisas estão se intensificando. Se você perguntar para qualquer morador de rua, eles estão apanhando da GCM hoje da mesma forma como apanhavam antes e as expulsões continuam iguais.

Correio da Cidadania: E em relação aos trabalhadores sociais, como está funcionando a perseguição?

Pamela Maria: Eles nos perseguem e tentam cercear os nossos espaços. Não fomos convidados inclusive para coisas que são técnicas e fazem parte do serviço social. Em reunião, mudaram todas as regras internas do pernoite e de como seria a divisão dos albergues: as Tendas Bresser e Alcântara Machado não foram convidadas para participar da reunião – que é técnica e na qual deveríamos estar – e com isso temos um boicote cada vez maior em relação às vagas de albergue.

Como diz uma companheira, “temos trabalhado com a arma na boca”. A ONG não faz nada. Já procuramos o sindicato algumas vezes para tentar pressionar e nunca se posicionou. Além disso, a prefeitura está sempre lá ameaçando novos fechamentos, já mandou embora várias pessoas de outros serviços que tentavam colaborar conosco e nós somos ameaçados o tempo todo de demissão, coisa que já houve. Gerentes de outros espaços que souberam de trabalhadores ligados ao Catso os demitiram ou transferiram para outros lugares, a fim de perderem o contato conosco. Isso sem contar as ameaças verbais.

Trabalhadores ligados ao Catso também já foram fechados em salas com supervisores da assistência para receber “broncas”, porque o que eles querem é nos coagir em relação a essa luta. Tanto que o fechamento das tendas é mais um modo de coação, já tentaram três vezes, não conseguiram e agora vieram com toda a força para acabar com esse tipo de mobilização, onde a população de rua tem voz junto aos trabalhadores.

Correio da Cidadania: Como você explica a manifestação do dia 26/11 e como está sendo articulada a resposta do coletivo e da população de rua para reverter a repressão e os retrocessos aqui discutidos?

Pamela Maria: Estamos de aviso prévio e a data de fechamento das tendas era 4 de dezembro. O ato contra o fechamento das tendas e a remoção das malocas foi em 6 de dezembro. É o que soubemos por fontes. Nesse dia, chegariam o “rapa” e a polícia para remover as comunidades Alcântara Machado e Bresser. Logo, o protesto foi para visibilizar o não fechamento das tendas e a não remoção das comunidades dos viadutos.

Sem querer ser pessimista, mas acho que isso não vai acontecer. O Haddad já deixou bem claro que já conhece o coletivo e não quer nos deixar lá. É uma contradição, pois trabalhamos para a prefeitura, em um serviço que é dela, e a própria prefeitura é contra o nosso trabalho e critica as nossas ações. Portanto, é bem claro para nós que ele não vai voltar atrás. Talvez com uma pressão maior, com muito esforço, talvez seja possível. Mas eu, particularmente, estou bem pessimista.

Falta diálogo. O pessoal da rua não quer o auxílio aluguel, que é a principal proposta da prefeitura, que prevê o oferecimento de R$1200 a cada três meses, ou seja, com 400 reais por mês. Todos sabemos que é impossível de se viver em São Paulo, não se aluga nada, muito menos quem tem trabalho, creche e escola das crianças mais próximos do centro.

É isso: a proposta deles é falha, não querem ouvir a população de rua, e mesmo que dessem uma solução melhor para as tendas em específico o próprio sistema cria populações de rua. Resumindo, não poderiam fechar um espaço que atende a população de rua daquela área da zona leste, e vão fechar três espaços para abrir apenas um novo, no Belém. As propostas são totalmente insuficientes.

Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania

Fonte: Correio da Cidadania, quarta-feira, 16 de dezembro de 2015