por Marcelo Biar*
Eis aí, em Manaus, uma nova velha rebelião. Nova em Manaus, e velha no Brasil. Repetitiva, arriscaria dizer. Uma rebelião de classe, ainda que sem consciência. Há algo que unifica a história do Carandiru (SP), Pedrinhas (MA) e COMPAJ (AM). São presídios brasileiros e cumprem, ou cumpriram, a mesma função. A de aglutinar excluídos. Na verdade, os presídios são locais que recebem os indesejados a ordem dominante, quando em excesso. Quando extrapolam o quantitativo conveniente e controlável. É assim hoje em dia e também desde o século XIX quando recebia em sua absoluta maioria, escravos indisciplinados. Pois é, pena de privação de liberdade para quem não a tinha. Reclusão e castigo a quem ameaçava a ordem. No Rio de Janeiro, entre 1810 e 1821, tivemos o total de 4776 presos. Destes, 3182 eram escravos, 944 libertos (negros ex escravos) e 20 homens livres**. Neste período, seja pela questão étnica ou pela condição jurídica (escravo ou homem livre) ficava muito fácil identificar quem devia ser reprimido no Brasil. Hoje, reconfigurada a questão étnica e, transformada a questão jurídica em questão de classe, seguimos com a mesma prática. A mesma lógica. O encarceramento do excluído.
Mas não se trata apenas de encarcerar. Na verdade é necessário demarcar este grupo como sendo aquele que erra, para que o projeto de dominação e exploração brasileiro tenha êxito. É preciso, portanto, ter uma prática penal que demarque o indivíduo que delinquiu como impróprio para o convívio social, não apenas no período previsto pela pena, mas por todo o sempre. E, considerando que como preso não temos um sujeito social aleatório que cometeu um delito, mas sim um perfil social muito claramente definido, pode-se, assim, atestar a todos, a incivilidade da classe subalterna. Pronto, a classe social que se apodera do aparato jurídico e repressivo legitimador da ordem classista, criminaliza a existência do grupo social por ela explorado. Transforma o estar à margem em ser criminoso. Ou seja, criminaliza toda identidade do subalterno, justificando e absolvendo a relação de produção que o subalternizou. Absolvendo a si própria da expropriação e naturalizando a diferença de classe.
Completa este quadro o uso que a classe dominante faz do oprimido que, à margem da sociedade, do emprego formal, da condição cidadã e tudo mais, acaba por se ocupar de atividades criminosas que acumulam capital para seu opressor. O tráfico de drogas é um exemplo. A etapa conhecida, temida e criminalizada desta atividade econômica tão contemporânea quanto concentradora de renda é, justamente, a fase varejista que é executada por este subalterno. Este que morre, é preso e não acumula capital. Este que vive e sofre uma peculiar expropriação do grande capital.
O presídio é um setor importante desta lógica expropriadora. É o local, inclusive, de onde o Estado organiza, fomenta e regula o crime a partir da concentração daqueles que o cometeram, e da “faccionalização” deste. Não por acaso as facções criminosas conhecidas e desenvolvidas nas últimas décadas foram criadas dentro dos presídios com clara intervenção e/ou mediação de agentes do estado.
O Estado centauro, aquele que possui parte do corpo voltado para a ausência do Estado (em questões sociais) e outra parte para a grande presença (em questões repressivas), assim chamado pelo sociólogo francês, Loicq Wacquant***, tem seu coração no presídio. Nesta lógica neoliberal, em que quanto maior a ausência do estado no campo social, maior, por consequência, no campo repressivo, o aparato vem se sofisticando. Criaram as SEAPs (secretarias de estado de administração penitenciária), o FUNPEN (Fundo Penitenciário) e uma parafernalha tecnológica como detectores de metal etc. Isto que parece investimento de Estado na questão da segurança é especialização e financiamento de um processo de dominação. As SEAPs são a afirmação do encarceramento como fim, já que de todo amplo espectro da execução penal concentra como seu único foco, a privação de liberdade. Não entende esta como um aspecto de todo um contexto que deve ser abrangido que envolve, dentre outras coisas, a reconfiguração de identidade daquele que delinquiu e a mediação com a sociedade e suas relações para que este sujeito se integre de forma construtiva na mesma. É a afirmação da clausura. Por sua vez, o FUNPEN é o órgão que financia tal prática. Criado em 1994, tem se esmerado em financiar ampliações e construções de cadeias. Ampliação deste sistema.
Neste Brasil que já é o quarto país em população carcerária, Carandiru, Pedrinhas e o recente episódio em Manaus (COMPAJ), são tão somente acidentes de percurso. O problema não são as rebeliões, mas sim o próprio sistema. Mas as rebeliões, contraditoriamente, ao invés de denunciar a falência deste sistema, reforçam no imaginário coletivo a indesejabilidade do preso, e consequentemente do seu grupo social, ratificam a repressão e, pasmem, afirmam a eficiência do Estado que, como se não lhe coubesse responsabilidade no processo de rebelião, aparece com soluções repressivas que nada diferem de suas ações anteriores, mas que parecem redentoras ante grande parte da população amedrontada pelos “perigosos”.
A foto, amplamente divulgada, dos rebelados de Manaus com armamento pesado no interior do presídio, assusta tanto e a tantos que impede que se pense na falência da instituição que, antes mesmo de ser queimada por estes, já se apresenta secularmente apodrecida. A mesma foto dá vida a notícia de que o governo Temer liberará R$1,2 bilhões para o FUNPEN. Divulgada dias antes da rebelião sem maiores repercussões, esta notícia reciclada pela rebelião dá pungência a ação repressora. Reafirma a necessidade de tal prática. Revigora um governo ilegítimo e gestor das relações que implodiram.
Não se trata, por ora, de discutir se a gestão dos presídios é pública, terceirizada ou privada. Trata-se de negar a ação gestora opressora. O laboratório de negação de direitos e estigmatização que é o presídio contemporâneo. Esta instituição que, não por acaso, surge na afirmação da sociedade burguesa, é um importante mecanismo da dominação de classe. Atua no consenso e na coerção. Na repressão e na construção de subjetividades que legitimam a desigualdade. Tanto quanto podemos dizer que a prisão é um elemento de opressão de classe, podemos afirmar que qualquer um que anseie o fim da desigualdade social, da opressão classista, que não repense a instituição de privação de liberdade estará operando de forma inócua. Assim, seja em Manaus ou na Lava Jato, na prisão de um ladrão de celular ou do Eduardo Cunha, temos que ter cuidado para não alimentar o monstro que quer nos engolir. A prática de violações aos direitos do cidadão é um projeto de poder, seja na sociedade livre, no trato do judiciário, ou na prisão. Quando comemoramos tal prática com aqueles que não simpatizamos reforçamos uma lógica de opressões com a qual, salvo engano, também não simpatizamos. (Espero que não!). O sistema não pode receber o respaldo de quem deseja sua derrocada. Milhares de presos, no Rio de Janeiro, tem o acesso a água limitado a 3 vezes ao dia com duração de 20 minutos e defecam em buracos no chão. Os chamados “buraco do boi”. Quando alguém comemora a chegada de Sérgio Cabral a uma destas prisões, percebendo ou não, aceita tal situação. E pior, a cada ex governador a ter seu direito violado, a despeito de sua indigna conduta na vida pública, milhares de oprimidos seguirão sendo desrespeitados em sua dignidade. Quando se comemora uma ação arbitrária do juiz Sérgio Moro com um réu da Lava Jato, repito, a despeito de sua indigna conduta, milhares de populares sofrerão, ou continuarão a sofrer, tais arbitrariedades. Enfim, não se vence um sistema comemorando suas ações. Não se rompe a exploração de classes fortalecendo seus mecanismos.
Termino recordando uma cena do filme 400 contra 1, baseado no livro homônimo de William de Souza (o Professor, fundador do Comando Vermelho), em que presos comuns ao verem sendo retirados do presídio da Ilha Grande os presos políticos, gritam que estava havendo um engano. Dizem que proletários ali, são eles. Sem entrar no mérito de quem representa o proletariado naquela circunstância, é preciso que se deixe claro que o sistema penitenciário brasileiro e o judiciário com sua prática autoritária, são um projeto classista de dominação e opressão. Em Manaus ou em qualquer lugar, o preso, a despeito do delito cometido, é sim um preso político. Um preso de classe. O desrespeito aos direitos humanos, na cadeia, assim como a arbitrariedade da justiça que fere, por muitas vezes, o próprio direito de defesa e a presunção de inocência, também é um projeto de dominação classista. Não perceber ou não denunciar isto é, portanto, consciente ou não, uma prática reacionária que sustenta esta sociedade desigual.
Manaus, Pedrinhas ou Carandiru, são panelas de pressão. Todas apitam ou explodem. Mas o que devemos discutir não é isto, mas sim a panela em si!
*Marcelo Biar é professor de História com mestrado em Serviço Social e doutorado em História, pela UERJ. De 2007 a 2011 trabalhou como diretor de escola e professor no Complexo Penitenciário de Gericinó (Bangu_ RJ) e é autor dp livro ARQUITETURA DA DOMINAÇÃO: O RIO DE JANEIRO, SUAS PRISÕES E SEUS PRESOS, Editora Revan.
** Este estudo pode ser encontrado no artigo ENTRE DOIS CATIVEIROS: ESCRAVIDÃO URBANA E SISTEMA PRISIONAL NO RIO DE JANEIRO 1790-1821, de Carlos Eduardo M. de Araújo, do livro HISTÓRIA DAS PRISÕES NO BRASIL, Editora Rocco.
*** Loiq Wacquant é um sociólogo francês, autor de AS DUAS FACES DO GUETO e AS PRISÕES DA MISÉRIA.