Por Isadora Salomão*

 

Nessa semana dois fatos influenciaram a política brasileira: A operação da PF, denominada Carne Fraca, que denuncia empresas nacionais e órgãos do Governo Federal de adulteração de alimentos em troca de dinheiro, e a disputa de quem foi o pai da Transposição do Rio São Francisco, tendo Alckmin, Lula, Dilma e uma pá de figuras expoentes da nossa política – que se colocam à direita e à esquerda do espectro político – fazendo de tudo para convencer do parto da criança.

Os desdobramentos dos fatos – e os posicionamentos de diversos setores e partidos sobre eles – mostram o que está em jogo e o que falta para a esquerda para tentar vencer a real disputa. Esse raciocínio pode ser explicado a partir de uma pergunta:

O que tem a ver a “descoberta” das adulterações das carnes produzidas e vendidas no Brasil e a inauguração “popular” da obra de Transposição do Rio São Francisco, na Paraíba?

Vamos por partes.

O debate central do primeiro caso tem passado por denunciar uma pretensa estratégia de ataque à produção nacional e aos “interesses nacionais”, mas ignorando que essa defesa da nossa indústria traz consigo a defesa do agronegócio, dos oligopólios e, consequentemente, do que isso traz de concreto para a vida da maioria dos homens e mulheres do nosso país – principalmente as mulheres pretas e pobres, que, assim como no debate sobre as Reformas da Previdência e Trabalhista, são as primeiras impactadas por uma política que bloqueia o acesso a terra, impede os avanços relacionados à produção agroecológica, à agricultura familiar e reduz direitos já conquistados.

Como já diziam as mulheres do MST, em sua jornada de lutas em 2016, essa é uma política que ignora que “no mercado de trabalho brasileiro existem várias desigualdades, a rotatividade, a intermitência do trabalho, a informalidade” (1). 

Isso não nega a capacidade e intencionalidade real do imperialismo, tendo intensificado seu projeto de poder a partir do golpe, de, dentre outros objetivos, buscar aprofundar no Brasil a submissão aos EUA, a partir do enfraquecimento da indústria de carnes brasileira, segunda maior exportadora mundial do alimento. Pensar em revolução brasileira sem pensar na influência dos EUA em nossa economia também é um equivoco.

No tocante à Transposição do Rio São Francisco, a contradição continua. A defesa que se ouve hoje, em tom de vitória popular, é expressa pela frase “O sertão vai virar mar”, atribuída à maior liderança da Guerra de Canudos, o pregador sertanejo Antônio Conselheiro, lida na grande obra literária “Os Sertões” (Euclides da Cunha) e musicada lindamente pela dupla Sá & Guarabira.

Lembro que, há alguns anos, quando do início da obra de transposição, setores importantes da esquerda e parte das correntes petistas faziam uma análise crítica da transposição e se juntavam ao coro dos movimentos sociais ribeirinhos, quilombolas e indígenas, que denunciavam a obra como um projeto do e para o latifúndio, um caro projeto calça-curta, que não pretendia resolver o problema da seca no semiárido brasileiro, mas favorecer setores da economia local que passam ao largo da maioria de sua população pobre.

Vale lembrar ainda que a greve de fome de Dom Luiz Cappio (Bispo do município de Barra/BA) e as declarações de artistas/ativistas como Letícia Sabatella e de organizações como a CNBB (Confederação Nacional de Bispos do Brasil) se somavam aos movimentos sociais contrários ao projeto e visibilizavam a luta, fazendo o contraponto direto com defensores mais fiéis e entusiastas da obra, Geddel e Ciro Gomes, ex-Ministros da Integração Nacional.

O debate que se fortalecia á época nestes movimentos era o de fortalecimento da “Convivência com o Semiárido” com o aprimoramento de Tecnologias Sociais e o consequente protagonismo local nas soluções de acesso à água, criando, inclusive, programas governamentais “nunca dantes vistos na história de nosso país”, como o Programa Água para Todos, o Programa Cisternas e o Programa Cisternas nas Escolas (2).  Era o contraponto necessário à política que potencializava o polígono das secas e o controle dos “coronéis” da política e economia locais, que utilizavam da água como sua principal moeda de barganha eleitoral. Que faziam da vida de sertanejos e sertanejas um eterno esperar pelos carros-pipa redentores. Como dizia o D. José Rodrigues, bispo emérito da Diocese de Juazeiro-BA: “No Nordeste não falta água, falta justiça!”.

Depois desse apontar de contradições, retomo a pergunta: O que tem a ver a “descoberta” das adulterações das carnes produzidas e vendidas no Brasil e a inauguração “popular” da obra de Transposição do Rio São Francisco, na Paraíba?

O que me parece é que a esquerda esqueceu de que política se faz com o olhar em horizontes estratégicos. A festa que se dá hoje na Paraíba, nesse dia de “Reinauguração Popular” da Transposição do Rio São Francisco, é a mesma festa que comemora um “Lula 2018” pela quantidade de bandeiras vermelhas ou pelas pesquisas de intenção de voto. Mas também é a anti-festa (ou enterro) cujos atores e atrizes ignoram a vida do povo – aqui e agora – e até hoje não construíram uma alternativa de Programa Democrático e Popular para o Brasil, acreditando que a revolução socialista virá tão somente do seu umbigo vanguardista e revolucionário.

Assim, a festa em questão, comemora apenas a incapacidade político-programática e reafirma a irrelevância e/ou perda dos ideais estratégicos que deveriam colocar a esquerda como alternativa política de transformação real nesse país. Tanto o Lulismo quanto o Esquerdismo se digladiam na superfície e não enxergam que é urgente a construção de um projeto verdadeiramente democrático e popular para o Brasil, numa perspectiva de realinhar nossos horizontes estratégicos aos ideais socialistas.

Enxergo hoje, não obstante alguns esforços, que nenhum partido que se reivindica à esquerda no Brasil está à altura desse desafio, de sair da sua zona de conforto, mesmo com a conjuntura de ataques e desmontes aos direitos duramente conquistados nas últimas décadas pelos trabalhadores e trabalhadoras. Uns se consideram filhos e seguidores cegos de um Salvador pseudo-neodesenvolvimentista e jogam toda sua energia nas eleições de 2018 e outros se colocam como “La crème dela crème” comunista, herdeiros do pensamento e da prática das maiores lideranças de esquerda da Europa do Séc. XIX.

Considero que o melhor caminho para a esquerda, talvez seja parar de festa e/ou dedo em riste e buscar requalificar seu papel estratégico. Isso passa por não precisarmos defender o indefensável para sobreviver politicamente. Só se faz isso com programa, povo e luta.

Entre a carne e o rio, fico com as mulheres pretas e pobres, fico com a esperança trazida pela luta, fico com os ideais de uma sociedade sem explorados e exploradores, onde o futuro e a vida de mulheres e homens desse país valham mais que a paternidade de obras faraônicas e a imagem de empresas do agronegócio nacional que não nos representam. Que nosso futuro e o futuro da esquerda também valha mais que o ego dxs vanguardistas e esquerdistas de plantão.

 

NOTAS:

1. Fonte: http://www.reformapolitica.org.br/noticias/entrevistas/1596-em-jornada-de-lutas-mulheres-denunciam-impactos-do-agronegocio-no-campo.html.

2. A autora participou, no estado da Bahia, da coordenação dos projetos Cisternas I e Cisternas II e do primeiro projeto piloto Cisternas nas Escolas, cujos resultados desembocaram na criação do Programa do Governo Federal homônimo.

 

* A autora é liderança mulher negra e feminista do PSOL Salvador. É ainda arquiteta, urbanista e Mestranda de Desenvolvimento Territorial e Gestão Social pela Escola de Administração da UFBA, além de ser dirigente do Coletivo quatro de novembro. Ex-dirigente do DCE-UFBA fez parte da primeira composição da Superintendência de Políticas para as Mulheres do Estado, onde foi uma das responsáveis pela elaboração do 1º Plano Estadual de Políticas para as Mulheres. Hoje atua no fortalecimento de Organizações da Sociedade Civil, como consultora