por Juliano Medeiros *
Na última semana, ao menos dois acontecimentos de grande repercussão reacenderam o debate sobre as eleições presidenciais de 2018 no âmbito das esquerdas. O primeiro foi o ato realizado pelo Partido dos Trabalhadores e movimentos sociais a ele ligados na cidade de Monteiro (PB). A repercussão da presença do ex-presidente Lula no ato e a disputa simbólica em torno da “paternidade” das obras de transposição do Rio São Francisco deram a tônica das discussões na mídia independente e nas redes sociais. O segundo acontecimento foi o impacto da operação Carne Fraca na opinião pública e a divisão que se verificou entre críticos e defensores da ação da Polícia Federal que revelou um escândalo de corrupção envolvendo agentes do Ministério da Agricultura e partidos políticos, promovendo discussões acaloradas que levantaram questões fundamentais para as relações entre o Estado e os setores produtivos.
O impacto destes acontecimentos nas esquerdas, porém, foi contraditório. No primeiro caso, poucos foram os que questionaram os problemas envolvendo as obras da transposição e o que se viu, em geral, foi um “oba-oba” em torno da candidatura de Lula. Escassas críticas à controversa transposição, quase nenhuma voz lembrando a greve de fome de Dom Luís Cappio ou o vazamento da barragem de Sertânia, que desalojou 60 mil famílias, poucos questionamentos aos impactos ambientais da obra.
No segundo caso, abriu-se um interessante debate sobre o lugar das esquerdas frente às principais cadeias produtivas do agronegócio e como estas impactam nossa economia. Alguns até descobriram que, na base do setor, uma imensa rede de pequenos agricultores alimenta parte dos médios e grandes frigoríficos e que, torcer por uma quebradeira geral, seria jogar milhares à própria sorte. Ao mesmo tempo, parece que outros, encantados pelo bonança do setor, não perceberam que os negócios dos “campeões nacionais”, queridinhos dos grandes partidos e largamente financiados pelo Estado, poderiam acabar num escândalo de corrupção de grandes proporções.
Mas o que estes episódios e o comportamento contraditório demonstrado pelas esquerdas frente a eles demonstra? É fato que o debate sobre a sucessão presidencial ganha a agenda política do país dia a dia desde que a candidatura de Lula passou a ser uma hipótese concreta. O problema é que, com o nome do ex-presidente no circuito, não se discute o principal: o programa. É como se Lula bastasse para resolver os problemas do Brasil. A máxima da “saudade do meu ex” sintetiza o sentimento que tem sido estimulado em torno da imagem do ex-presidente. Mas todo mundo que já reatou um relacionamento com uma “ex” (ou um “ex”) sabe o trabalho que isso dá. E sabe também que – não raramente – a tentativa acaba em frustração.
No caso da transposição do Rio São Francisco, a festa de campanha não deixou margem para uma reflexão crítica sobre a eficácia da obra ou sobre os investimentos que ainda serão necessários para construção das adutoras que levarão a água às cidades, muito menos sobre seus impactos ambientais ou os mecanismos de controle público necessários para evitar que a transposição sirva apenas ao grande agronegócio.
No caso da Operação Carne Fraca ocorreu o contrário. Estando o ex-presidente fora dos holofotes, se produziu um rico debate no plano econômico. Com todos os excessos possíveis, ainda assim, o que vimos foi uma tentativa de interpretar os impactos da monopolização da economia brasileira, meios para reverte-la e – o mais relevante – formas concretas de combater a tendência de reprimarização de nossa economia, aprofundada nos últimos vinte anos pelos governos do PT e PSDB. É aqui que está a chave do futuro da esquerda brasileira: da capacidade de refletir sobre a realidade socioeconômica dependerá a possibilidade de formulação de um programa capaz de enfrentar os séculos de atraso e dependência a que estamos submetidos.
O pré-candidato do PT já se movimenta para responder a essas questões. Reunido pelo Instituto Lula, um time de economistas começa a pensar um plano econômico para o Brasil pós-Temer, segundo atesta matéria veiculada pelo jornal Valor, na última segunda-feira. No radar dos economistas estão propostas como o alongamento e a renegociação das dívidas dos estados, municípios e mesmo das famílias; a retomada do crédito subsidiado a instituições financeiras como o BNDES, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal; condições facilitadas para a renegociação das dívidas do setor empresarial e uma ampliação do endividamento público (que saltou de 56% para 70,5% do PIB desde o início do ajuste fiscal iniciado por Dilma e aprofundado tragicamente por Michel Temer). São fórmulas repetidas por Lula em eventos públicos em todo o Brasil e não deixam de ser, a rigor, o esboço de um programa econômico.
No mesmo dia, a Frente Brasil Popular, da qual fazem parte movimentos como MST, CUT e UNE, divulgou documento intitulado Plano Popular de Emergência, onde apresenta uma série de medidas urgentes para, segundo o texto, “restabelecer a ordem constitucional, enfrentar a crise econômica, salvar as conquistas históricas do povo trabalhador e defender a soberania nacional”. Sem se referir às eleições presidenciais de 2018 o plano apresenta medidas avançadas para a democratização do Estado, geração de emprego e renda, reforma agrária e agricultura familiar, reforma tributária, defesa e direitos sociais e trabalhistas, acesso à saúde, educação e moradia, além de ampliação dos direitos civis e política externa. Embora se apresente como uma plataforma emergencial, com claras limitações no plano macroeconômico, a iniciativa mostra uma sincera disposição de colocar, novamente, o boi à frente da carroça: não basta discutir nomes sem aprofundar imediatamente o debate programático.
Particularmente, sou da opinião de que Lula, se não for condenado em segunda instância em uma das cinco ações penais que tramitam contra ele na Justiça Federal, dificilmente assumirá o programa defendido pelos movimentos que compõem Frente Brasil Popular, mais radicalizado do que aquele em discussão no Instituto Lula. Ao contrário, o petista tem optado por sinalizar que não implementará medidas “heterodoxas”. Nos relatos disponíveis até agora sobre os encontros promovidos por seu Instituto, não houve uma palavra sequer sobre a necessidade de anular o teto de gastos imposto pela Emenda Constitucional 95, a necessidade de uma maior tributação sobre o capital e o patrimônio ou uma reforma profunda do sistema da dívida. As menções sobre a necessidade de redução do custo da dívida através da diminuição da taxa de juros apareceram sempre subordinadas à dinâmica do superávit primário e mesmo temas aparentemente prosaicos, como a utilização das reservas brasileiras para o financiamento de obras de infraestrutura, não encontram consenso no time de economistas que discutem com o ex-presidente.
Resumo da ópera: o debate em torno do apoio a Lula divide a esquerda, interdita o necessário balanço crítico sobre a experiência do PT à frente do governo federal e impede a formulação de um programa capaz de corrigir os erros do passado. Por isso, centrar as discussões sobre 2018 a partir da defesa de Lula, colocando o debate programático em segundo plano, pode até fazer sentido para os simpatizantes e partidários do ex-presidente, mas não é uma boa opção para o futuro da esquerda – que não pode e não deve ficar refém do xadrez político mais imediato. Precisamos estimular iniciativas que discutam a fundo um programa para o Brasil e, necessariamente, façam o balanço de erros cometidos no plano das políticas macroeconômicas. Espaços dessa natureza começam a tomar forma. Interditar esse necessário processo de reflexão seria um erro que a história não perdoaria.
*Juliano Medeiros é Historiador, Presidente da Fundação Lauro Campos e Coordenador Político da Liderança do PSOL na Câmara dos Deputados.
(artigo originalmente publicado na Revista Fórum – 24/03/17)