por Marcio Rosa *
‘Gatinho de Cheshire’ começou um pouco tímida, pois não sabia se ele gostaria do nome, mas ele abriu ainda mais o sorriso.
‘Vamos, parece ter gostado até agora’, pensou Alice, e continuou: ‘Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?
’‘Isso depende bastante de onde você quer chegar’, disse o Gato.
‘O lugar não importa muito…’, disse Alice.
‘Então não importa o caminho que você vai tomar’, disse o Gato.
Alice no País das Maravilhas. Lewis Carrol.
O ciclo do lulismo, de reformismo fraco em aliança conservadora, encontrou seu limite histórico e foi superado pelo golpe. Da mesma forma, o ciclo da garantia de direitos democráticos e sociais inaugurado com a constituição de 1988 está se desfazendo com as reformas impostas pelo governo golpista e neoliberal. Precisamos de um programa para os novos tempos, para uma esquerda pós petismo.
O mundo mudou muito nos últimos tempos. Estamos na era da globalização e das finanças, da precarização dos direitos e avanço do conservadorismo. É enorme a crise política e a busca pela solução individual dos problemas só se amplia. O neoliberalismo impõe reformas e dita a relação promíscua entre público e privado, se impregnando nos valores e nas práticas cotidianas como competição e meritocracia. Precisamos de um programa capaz de despertar os acomodados e de organizar os excluídos.
Assistimos ao levante dos indignados pelo mundo e o surgimento de novos movimentos e partidos como um grito da maioria, organizados de formas diferentes, buscando ao seu modo enfrentar o 1% de cima. O dito popular recomenda não jogar a criança com a água do banho. Precisamos ser capazes de reunir a experiência e a tradição da esquerda, da Comuna de Paris e da Revolução Russa, da Cabanagem e dos quilombos, com a alta tecnologia e a reestruturação do mundo do trabalho, com as pautas setoriais e o ecossocialismo.
Essa atualização não pode ser feita a frio, nem é tarefa exclusiva para especialistas. Antes, ela deve ser fruto da luta conjunta e das necessidades e propostas dos movimentos. O programa é, nesse sentido, peça fundamental para o amplo processo de reorganização da esquerda. Não é, ainda, a hora de apresentar as soluções específicas, mas sim de convidar a todos a um grande exercício de reflexão coletiva do ponto de vista dos excluídos e oprimidos, uma conversa sobre os governos petistas e seus limites e sobre as possibilidades e necessidades para o futuro.
O Brasil precisa de um programa para enfrentar a crise. Nosso programa precisa ser um manual de guerrilha contra o 1% e um manifesto por um modelo ecossocialista de desenvolvimento. Um compromisso com governar obedecendo, construído por muitos corações e mentes. Uma proposta para enfrentar a crise econômica e política feita do ponto de vista das mulheres, dos LGBTT, das negras e negros, de todos os excluídos e oprimidos.
Três eixos devem orientar nosso debate.
Primeiro, democracia radical para enfrentar a crise política e o desencanto das pessoas. O afastamento do cidadão das decisões da política e o descrédito com os partidos e instituições aponta para os limites de uma democracia representativa que chama as pessoas à participar apenas nas eleições. Isso resulta em um sistema político onde os “representantes” estão descolados dos eleitores e, na verdade, representam os interesses de empresas ou grupos de apoio. A esquerda precisa de soluções que coloquem as pessoas para participar e decidir, e que organizem e empoderem a população dos seus negócios, rompendo com a atual “governabilidade democrática” e colocando o povo na parada.
Segundo, cidadania radical, combatendo a exclusão, opressão e discriminação e garantindo os direitos básicos de todos. Boa parte da população não tem acesso aos serviços básicos e garantia de seus direitos fundamentais, enquanto os negros e negras, as mulheres, as pessoas com deficiência, os LGBTT são discriminados e excluídos. É preciso um conjunto de medidas que combata a cidadania restrita e que coloque o Estado como agente de políticas públicas, e não como polícia, justiça e extermínio. O aumento dos gastos sociais e o fortalecimento do serviço público vem no sentido de estabelecer acesso universal aos direitos. Políticas de direitos humanos, combate ao preconceito e à exclusão são fundamentais para construir uma sociedade onde o machismo, o racismo, a homofobia e o capacitismo não sigam matando, violentando e oprimindo.
Terceiro, um modelo de desenvolvimento radical. Nossa economia é organizada de forma a favorecer os interesses do capital, garantindo uma superexploração do trabalho e uma alta lucratividade, em especial nos setores do agronegócio e das finanças A desigualdade social e a extrema pobreza persistem, da mesma forma que a crise das cidade e a urbanização excludente avançam. Nesse processo, o meio ambiente é atacado, tudo para satisfazer os lucros do capital. Precisamos propor outra forma de organizar a economia, que privilegie o trabalho, a melhora das condições de vida, o desenvolvimento e a autonomia nacional, sem prescindir da defesa do meio ambiente, da sustentabilidade e do respeito às populações originárias.
A primeira tarefa é inventar uma forma de debater o programa de governo, que seja um processo de construção colaborativa, em parceria com movimentos sociais e com os dispostos a construir um projeto de mudança para o país. Em busca de uma síntese representativa, precisamos ouvir diversas vozes, de diferentes pessoas, lugares e abordagens, de forma ampla e solidária. Fica aqui uma proposta e um convite. Um desafio por um outro mundo, de justiça e solidariedade.